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LITERATURA BRASILEIRA
Textos literários em meio eletrônico
De Profecia e Inquisição, do Padre Antônio Vieira.
Edição de referência: Antônio Vieira. De Profecia e
Inquisição. Brasília, Senado Federal, 2001.
ÍNDICE
De Profecia
I
II
III
IV
De Inquisição
V
VI
VII
I
Defesa do livro intitulado QUINTO IMPÉRIO, que é a apologia
do livro CLAVIS PROPHETARUM, e respostas das proposições censuradas pelos
senhores inquisidores: dadas pelo Padre Antônio Vieira, estando recluso nos cárceres
do Santo Ofício e Coimbra
Sendo ontem chamado à mesa, me foi dito que estavam nela os
senhores inquisidores para sentenciarem a minha causa, e que antes disso
queriam ouvir de mim tudo o que tivesse que dizer ou alegar para bem dela; e
porque a última doença (de que estou mal convalescido) me não deixou com forças
nem alento para poder falar em público, pedi licença para falar por papel, que
me foi concedida. Protesto pois do modo que me é possível, diante desses
senhores, que antes de se me dar a notícia que as minhas proposições estavam
censuradas, e as censuras aprovadas por sua santidade, fazia eu tenção de
propor em presença de vossas senhorias todos os pontos ou questões delas, dando
os fundamentos das opiniões que segui, ou determinava seguir, respondendo aos
das contraditas; mas depois que me foi dada a notícia da aprovação e autoridade
do sumo pontífice, que é argumento a que a minha fé, resignação e obediência,
não sabe outra solução senão a da veneração, obséquio e silêncio, sem que para
isso seja necessário cativar ou fazer força ao entendimento, que sempre está e
esteve sujeito aos menores acenos da Igreja, e de qualquer de seus ministros,
havendo por esta via cessado o escrúpulo que só me dilatava; e tendo eu
aceitado, sem mais demora da razão, ou explicação das ditas proposições, a
todas as censuras delas, e suas dependências, nenhuma outra coisa se me
oferece, que possa fazer ou dizer importante ao bem da minha causa, mais que o
representá-la a vossas senhorias em um menor e mais abreviado processo, no qual
a possa compreender toda junta de uma vez, dividindo-a para isso em partes
certas e determinadas, onde se veja brevemente o dilatado, distintamente o
confuso, e claramente o escuro e mal declarado por mim: e pois não posso fazer
a dita representação com razões vivas (como muito desejava) falarão por mim
estas poucas regras, não como nova alegação, pois não digo nelas coisa de novo,
mas como um breve memorial deste processo, repartido, para maior facilidade,
clareza, e distinção, nas oito ponderações seguintes:
PONDERAÇÃO l.a
ACERCA DO ASSUNTO DO LIVRO
O argumento ou assunto do livro que quis há muitos anos
escrever, e do qual tinha totalmente desistido, depois que me apliquei às
missões, era o Império Consumado de Cristo debaixo do nome de Quinto Império:
digo - Império - conforme o cômputo dos impérios de Daniel, entendendo-se por
império consumado de Cristo, não algum império que Cristo havia de ter nos
tempos futuros, senão um novo e maior estado do mesmo império e reino que
Cristo hoje tem, e teve sempre depois que veio ao mundo, que vem a ser por
outros termos, um novo e perfeito estado da Igreja Católica, que é o único e
verdadeiro reino de Cristo. .. [* coment. post 7 Divisões]
As partes, circunstâncias, e felicidades de que se compõe
esse novo e mais perfeito império ou estado, eram a extirpação de todas as
seitas de infiéis, a conversão de todas as gentes, a reforma da cristandade, e
a paz geral entre os príncipes, a mais abundante graça do Céu, com que
salvariam pela maior parte os homens, e se encheria o número dos predestinados,
sendo os instrumentos imediatos da dita conversão um sumo pontífice santíssimo,
e alguns varões apostólicos de singular espírito, que, divididos por todas as
terras de infiéis, as reduziriam e sujeitariam à Igreja, e um imperador
zelosíssimo da propagação da fé, o qual empregaria toda a sua autoridade em
serviço do dito pontífice, e favor dos pregadores, segurando-lhes o passo, e
defendendo-os onde necessário fosse com as suas armas, e sujeitando com elas a
todos os rebeldes, principalmente o império romano, com que o faria senhor do
mundo.
Até aqui o assunto em geral, o qual de nenhum modo é invento
meu, senão promessa e esperança, e exposição de muitos santos antigos e
modernos, e de muitos comentadores das escrituras, e de muitas pessoas de
espírito profético, geralmente aprovado e recebido, de que porei somente os nomes: S. Justino, e S. Gaudêncio, S. João Crisóstimo, S. Hilário, Osório,
Uberto, Panônio, Eclio, Herculano, Pedro Bolorengo, Serafino de Berma,
Genebrardo Talo, Pedro Galatino, Salazar, Serelego, Arrias Montano, Bandale,
Joaquim Abade, Aperilas, S. Metódio, Teófilo Eremita, Malaquias, S. Francisco
de Paula, S. Brízida, S. Amatildes, S. Isidoro, S. fr. Gil, o Beato Amadeu, S.
Ângelo mártir, o irmão Mem Rodrigues da Companhia de Jesus, e outros muitos
católicos pios, e, exceto o último, todos doutos.
E porque os sobreditos autores que falam no imperador que
Deus há de dar à sua Igreja, para as execuções temporais desta espiritual
conquista, não declaram absolutamente, que pessoa particular haja de ser,
acrescentava eu, ou pretendia acrescentar, posto que digam muitas propriedades
e circunstâncias, de que se pode conjecturar o argumento geral dos ditos autores
à acomodação e explicação do reino, para que tinha Deus guardado aquela grande
empresa e império, interpretando em honra danação, que seria rei português, e
do reino de Portugal, fundando este pensamento principalmente nas palavras de
Cristo a El-Rei D. Afonso Henriques - voto in te, et in semine tuo imperium
mihi stabilire.
A este fim (o que muito se deve notar) determinava eu seguir
ou supor duas opiniões necessárias ao dito intento, ambas comumente recebidas
dos teólogos; a primeira, que o império de Cristo não só é espiritual, senão
também temporal, cada um a respeito de seus vassalos, sendo este título ainda
mais próprio no príncipe, que o fosse de todo o mundo, em suposição das quais
duas opiniões, aplicando o sobredito império a um príncipe descendente D'el-Rei
D. Afonso Henriques, se vinha a cumprir e verificar nele inteiramente toda a
profecia das palavras e promessas de Deus, pois no tal príncipe estabelecia
Cristo um império, o qual juntamente seria império de Cristo, e império dum
descendente do mesmo D. Afonso Henriques, que é toda a energia - in te, et in
semine tua - em seguimento desta aplicação, e descendo a individuar a pessoa
deste príncipe, determinava eu chamar à pretensão do dito império todos os que
descendem D'el-Rei D. Afonso Henriques, e principalmente por serem a sua décima
sexta geração, ou descendentes dela, tinham conhecido direito à promessa de
Cristo, como são ao presente o imperador da Alemanha, por filho da imperatriz
D. Maria: El-Rei de França por filho da rainha D. Ana, ambas irmãs de Filipe IV
de Castela, ou seu filho pela própria descendência.
Mas porque o meu intento total era concluir que este
príncipe não só havia de ser descendente D'el-Rei D. Afonso Henriques, senão
também rei português, e de Portugal, assentado neste princípio segundo, chamava
da mesma maneira a pretensão aos reis portugueses, que parece podiam ter maior
direito a ela, pondo em primeiro lugar a opinião comum D'el-Rei D. Sebastião, e
todos os fundamentos que tinha, e no segundo a El-Rei D. João IV, pela
estimação também comum com que na restauração do reino foi reputado pelo
verdadeiro encoberto, satisfazendo ao fortíssimo argumento da sua morte, com
exemplos e razões que mandei à rainha nossa senhora no papel deste assunto, por
ser o que naquela ocasião podia servir de alivio de sua majestade, sendo porém
certo que o meu intento não era resolver por último, que o Senhor Rei D. João
fosse ou houvesse de ser o prometido imperador: assim o puderam testemunhar
algumas mas pessoas dignas de toda a fé, a quem foi força comunicar o meu
segredo e o meu pensamento, os quais sabem que verdade era dedicar eu este
livro a El-Rei D. Afonso VI, que Deus guarde, e concluir por remate de tudo,
haver sua majestade ser o futuro imperador, cm quem tivesse princípio o império
prometido ao rei do mesmo nome, provando esta final resolução com a cláusula do
mesmo juramento do rei, e promessa de Cristo - usque ad decimam sextam
generationem in qua atenuabitur proles, et in ipsa sic atenuata respiciam, et
videbo - nas quais palavras expendia ou havia de expender, que o relativo - in
ipsa - não se referia à décima sexta geração, que foi El-Rei D. João IV, senão
à prole da décima sexta geração, que é El-Rei D. Afonso.
Este é, senhores, em geral todo o argumento daquele assunto,
esta em particular toda a aplicação, ou a acomodação dele, em que peço se
ponderem quatro motivos, que não pouco demonstram a sinceridade e pureza da
minha tenção:
1.° Quanto ao assunto em geral, se me não deve imputar
culpa, pelo ter por católico e pio, e sem escrúpulo de perigosa doutrina, pois
tem por si a autoridade e revelações de tantos santos, e de tantos e tão graves
autores de nossos tempos, cujos livros, aprovados pelo Santo Ofício, correm sem
reparo algum em toda a cristandade.
2.° Quanto à aplicação do dito assunto, e imperador dele, o
rei de Portugal, que Rusticano (ita), um dos autores acima alegados, religioso
de S. Francisco, em um livro que imprimiu em Veneza, aprovado pele Santo Ofício
de sua santidade, com título de recopilação das profecias modernas, aplica o
mesmo império a el-rei de França, o qual rei se vê estampado em muitas partes
do mesmo livro: e pois é coisa lícita e aprova da pelo Santo Ofício, e maiores
ministros da Igreja, o ser a mesma aplicação a um príncipe da cristandade,
porque me não pareceria a mim também lícito aplicá-lo a outro, principalmente
não havendo nenhum no mundo que tenha a seu favor um tão notável e autêntico
testemunha como o do juramento D'el-Rei D. Afonso Henriques?
3.° Quanto ao dito assunto, e aplicação dele, se colhi
manifestamente qual foi a tenção que tive em seguir a opinião comuníssima do
mesmo temporal de Cristo por partes, se eu supusesse a opinião contrária, que
admite em Cristo o império espiritual, quando viesse a dizer sobre a cláusula -
inte - mihi - que o mesmo império de Cristo, e mais d'el-rei de Portugal, papa
ou cabeça da Igreja; pois o império espiritual de Cristo não tem, nem pode ter
outra cabeça senão o papa: sendo porém esta razão tão natural e manifesta, e
sendo outrossim a eleição da dita opinião do império temporal de Cristo,
forçosamente necessária para o dito assunto, bem se deixa ver quão alheio do
meu sentir é o fundamento sobre que me foi argüida tanta máquina de suspeitas e
erros, fundados todos na opinião do dito império temporal de Cristo, e quão
impossível coisa parece, que a disposição de todo este meu fundamento, assim
como estava truncada e imaginada, se houvesse de penetrar ou perceber antes de
se declarar, donde nasceu interpretar-se o título de Quinto Império, como são
também todas as conseqüências que dele se inferem.
4.° Que o dito chamado livro, verdadeiramente de nenhum modo
é, nem foi, nem se pode chamar livro, senão pensamento de livro, e pensamento
retratado, e totalmente deixado, por haver mais de onze anos que tinha
desistido do sobredito pensamento: nem faz contra esta verdade, bem provada com
o retiro do Maranhão, e com me haver aplicado à conversão das gentes, o intento
que tinha de dedicar o dito livro a sua majestade, porque este pensamento era
ex necessitate, et preter intentionem, depois que pelos cargos que se me deram
no Santo Ofício fui obrigado a explicar o dito assunto, e o Quinto Império, e
questões dele, para mostrar os fundamentos e motivos por que o tivera por
provável e sã doutrina; e em disposição de me ser forçoso gastar o tempo neste
estudo, faço conta de o não perder, e dedicar o dito livro a el-rei, no caso em
que depois de representar nesta mesa todos os pontos principais, mas não
reprovassem em coisa essencial que desfizesse o dito assunto. Assim que, quanto
à minha tenção, nem por pensamento me passara fazer o dito livro, e só tratava
de alimpar e imprimir os meus sermões, como o padre geral me tinha mandado.
PONDERAÇÃO 2.ª
ACERCA DOS PAPÉIS
Os papéis de que se tiraram as culpas de que fui argüido são
quatro: o primeiro, é o papel do Maranhão, no qual se deve ponderar que todas
as culpas que dele se formam se reduzem a um só ponto, que foi o ter o Bandarra
por profeta, na qual suposição, que muito é que eu provasse o que ele
expressamente diz, ou o que da suas trovas por boa conseqüência se segue. Os
fundamentos por que tive para mim que fora profeta, e o pretendi privadamente
provar naquele papel, são os que presentei na mesa expendidos em escritura;
autoridades e razões especulativas e práticas, em que se seguia a opinião
geral, do que por palavras e escritos impressos assim o julgam pregoavam,
entendendo da mesma maneira, que assim como se pode provar que tal ação foi
milagre, e que tal morte foi martírio, assim se pode provar que tal predição ou
predições foram profecias, e assim como se pode inferir que o que faz tal ação
é milagroso, e o que padece tal morte é mártir, assim se podia inferir, que o
que disse tais predições era profeta; tendo para mim, finalmente, que os papéis
o discursos em que as sobreditas coisas se provam, as podem provar comunicar
seus autores privadamente, sem violar a proibição, ou incorrer penas dos que
publicam ou divulgam semelhantes tratados; em próprios termos, é o que eu só
fiz, remetendo o dito papel a um rainha, pelo modo e meio mais secreto que
podia ser, que foi por mão de seu confessor: e se ele ou outrem o divulgou,
parece se me não deve imputar essa culpa.
O segundo papel é o que enunciei ao conselho geral, pedindo
restituição de tempo em que havia estado doente, e mudança de lugar por alguns
dias, para convalescer da dita enfermidade, com ordenavam os médicos do Santo
Ofício, sendo a mesma petição e submissão, com que nela tão miudamente fiz de
mim atos mui formais da mesma obediência, reconhecimento, e respeito, e não
podendo haver direito algum que presuma que quem pede favor e graça queira
ofender ao juiz que o há de sentenciar ou absolver, sendo os juízes principalmente
em sentença de que se não pode apelar; assim que, se no sobredito papel
intervieram alguns erros ou defeitos, foi por não ser feito por letra minha, ou
procurador versado (o que eu por esta mesma razão pedi) nos estilos do Santo
Ofício, e por ser eu totalmente falto de semelhantes notícias, e por não serem
exatas as que procurei do modo que me era possível, os quais defeitos e erros,
finalmente, se purificaram no mesmo papel, com dizer que nas minhas propostas
ou petições, pedia ou pretendia somente o que me fosse lícito, protestando e
pedindo perdão de tudo, e de qualquer coisa em que pelas sobreditas causas
houvesse errado, ou faltado ao que devia.
O terceiro papel foram os cadernos de apontamentos escritos
pela razão que fica dita nesta mesa, para mostrar como obedeci e trabalhei, os
quais eu de nenhum modo oferecerei em resposta ou defesa das proposições, ou
proposição alguma, antes sendo-me ordenado que as deixasse, contra minha
vontade e tenção o fiz, em pretexto (ita) de todo o sobredito, e de que eu não
afirmava, nem sabia, o que nos ditos papéis estava escrito, porque não tivera
tempo para os ler, e quando os escrevia, ainda não estava resoluto no que havia
de dizer, ou de seguir, sendo somente lançados a pedaços naqueles cadernos, o
que estudava ou me ocorria informe ou irresolutamente até a última eleição,
assim como fazem todos os escritores de livros, os quais depois de toda esta
matéria estudada e junta, e depois de mui ponderadas e examinadas as
dificuldades, se resolvem no que absolutamente hão de dizer, e conforme a dita
resolução, ou moderam, ou ampliam, ou mudam, prosseguem, ou tiram, ou
acrescentam, e muitas vezes riscam e retratam as mesmas conclusões que
determinavam seguia, não havendo coisa alguma tão exatamente escrita no primeiro
correr da pena, que não tenha sempre que emendar; e tudo isto é o que havia e
determinava fazer nos sobreditos cadernos, nos quais, como bem se vê, não há
parte ou discurso algum que esteja concluído, havendo muitos riscados, e outros
prosseguidos por diferentes modos e razões, para que depois se elegesse o mais
conveniente. Assim que, nem os ditos discursos, nem as proposições, ou palavras
deles, ou conseqüências algumas, se me devem imputar por culpas, por serem
todas duvidosas, e indeterminadamente apontadas, e não absolutamente escritas,
nem proferidas, antes da sinceridade e confiança com que pus na mão dos
ministros do Santo Ofício todos os ditos papéis, sem emendar, nem ainda rever
coisa alguma deles, se mostra claramente a pureza da fé, e verdade da tenção
com que foram escritos, e entregues sem temor nem imaginação de receio, porque
pudesse vir ao pensamento o que nunca tinha passado pelo meu.
O quarto e último papel é o que fiz depois da minha
reclusão, de cujo princípio e fim largamente consta que nenhuma das coisas que
nele escrevi foi a fim de as defender ou afirmar, senão de referir e
representar a vossas senhorias os motivos e fundamentos que tivera para reputar
por provável o que tinha escrito, ou determinava dizer ou escrever; e que haver-me
enganado, como confessava, nas matérias das proposições censuradas, fora sem má
tenção nem culpa Nos sermões impressos em Castela não falo, porque
absolutamente aqueles papéis não são meus, senão de quem os quis imprimir
debaixo do meu nome, para me afrontar, ou para ganhar dinheiro.
PONDERAÇÃO 3.ª
ACERCA DAS PROPOSIÇÕES
Antes de propor o que devia seguir, se pondere nas
proposições (ita), referirei brevemente as ditas proposições:
1.ª Reprova-se o título de Quinto Império, por ser (como
dizem) o dito império do Anticristo: e eu no dito acedi, ou segui a sentença
ordinária dos teólogos e expositores que, no império das visões de Daniel,
dizem que o Quinto Império é o império e reino de Cristo.
2.ª Reprova-se provar o império temporal de Cristo com
alguns dos mesmos lugares, em que se prova o espiritual, e que isto se não pode
fazer sem ser in sensu judaico, e contra Cristo. E este modo de provar é a
prova ordinária de todos os teólogos que seguem a dita sentença, posto que não
em todos os homens, que absolutamente falam do reino de Cristo, senão somente
aqueles em que as palavras e circunstâncias do texto admitem ambos os sentidos,
e ambos os reinos, como se pode ver nos ditos autores, e particularmente em
Alonso de Mendonça, só sobre o texto do salmo 31 - dominabitur a mari usque ad
mare.
3.ª Reprova-se dizer que o império de Cristo não é só
espiritual, senão também temporal, e esta opinião é a mais comum, e dos maiores
teólogos deste século, Soares, Vasques, Lugo, Molina, Salazar, Estudoro,
Francisco de Mendonça, Alonso de Mendonça, Cabrera, e outros muitos et nobis;
Sime Catena lhe chama - Communissimo, et verior.
4.ª Reprova-se a opinião que explica as visões do cap. 2.° e
7.° de Daniel do Reino de Cristo na Terra, ou terreno, em que se opõe ao
celestial, posto que o mesmo reino de Cristo se há de continuar eternamente no
Céu, como é dito, e na dita matéria segui a explicação comum de todos os
expositores, e de quase todos os teólogos de um e outro; texto 61 - Replevit
omnem terram, et subter omnem terram.
5.ª Reprova-se o afirmar que Cristo em este mundo exercitou
alguns atos do dito domínio e jurisdição temporal. Esta é a opinião recebida de
muitos autores.
6.ª Reprova-se a opinião do Quinto Império, e futuro estado
consumado de Cristo, porque se poderiam queixar os passados também de não
lograrem o dito estado; e ou se diga que Deus o não fez desde o princípio da
Igreja, porque o não quis, ou porque o não pôde, sempre é impiedade: mas sem
embargo destes argumentos, a dita opinião é de todos os autores, que são santos
canonizados, e se é havê-lo Deus revelado assim, o qual Deus e Senhor Supremo é
o que só sabe e pode saber os porquês da sua providência, sem por isso se
poderem queixar dele os homens, como se não queixaram os cristãos das novas
perseguições da Igreja, de não virem na idade doirada dela, como chamam os
historiadores aos tempos de Constantino Magno: e posto que os japões se
queixavam de que sendo Deus lhes mandasse tão tarde a luz, e conhecimento da
sua fé, esta queixa era sem razão, como S. Francisco Xavier lhes mostrou, e se
pode ver em Lucena.
7.ª Reprova-se dizer que neste tempo haverá um imperador
cristão mui poderoso, que será como braço secular da Igreja para todas as
execuções e assistências importantes à provação e estabelecimento do dito
estado, porquanto o império e potência temporal anda sempre junta com a
ambição, que é destruidora e não propagadora do reino de Cristo, e não pode
Deus levantar ou dar império temporal a fim de converter e reformar o mundo;
mas a esperança e promessa de haver o dito imperador é expressa profecia de S.
Francisco de Paula, S. Brízida, S. Isidoro, de S. Metódio., de S. Gertrudes, de
S. Ângelo, do Beato Amadeu, e outros santos, e recebida comumente de todos os
autores que seguem a opinião do dito estado, os quais não têm por coisa nova, e
muito menos alheia da Providência, haver um príncipe, ou muitos, em quem não
ande junta ao império a ambição, senão a piedade e zelo da glória e serviço de
Deus como Davi, Josias, Constantino, Carlos Magno, Luís, Estêvão, Casimiro
Pelaio, e outros muitos em todos os reinos da cristandade; nem que este
instrumento temporal na sua esfera seja desproporcionado para a conversão e
reformação do mundo, antes muito eficaz para ajudar a promover a dita reforma e
conversão, pois é certo - quia reges ad exemplum totus componitur orbis.
8.ª Reprova-se o ditame que admite o dito imperador como
instrumento, ainda que imediato e remoto, da conversão, porquanto de qualquer
modo que concorra para ela é fazer a potência temporal medida da salvação e
graça divina, e a mesma graça conexa e dependente da dita potência, sobre ser o
dito modo de converter alheio da doutrina de Cristo, e do exemplo dos
apóstolos, os quais o mesmo Cristo mandou - sine baculo et sine pera - mas é
certo que a dita opinião e ditame de seus autores não faz a potência temporal
medida da graça, nem a graça dependente ou conexa com ela, e somente julga a
dita potência por condescendente ou necessária, per accidens, não a graça,
senão os meios dela e da fé. Esta é não só a sentença comum do padre Soares, e
de todos os teólogos, senão a praxe recebida e usada hoje e aprovada pelos
sumos pontífices na conversão das Índias, e assim como concorreu Carlos V e
El-Rei D. Manuel e seus sucessores para a conversão delas, assim, diz esta
opinião, concorrerá aquele imperador para a conversão do mundo.
9.ª Reprova-se o admitir que a dita conversão há de ser ou
pode ser antes da vinda do Anticristo, e esta opinião é expressa de Herculano,
Salazar e de Servelego, e de todos os santos antigos e modernos, que seguem a
sentença do estado consumado do reino de Cristo, e supõe juntamente a tradição,
de que entre o dito Anticristo e o dia do juízo não há de haver mais que cento
e quarenta e cinco luas, reconhecendo os ditos autores, suposta esta tradição,
se não podem de nenhum modo entender muitos lugares da escritura sagrada, senão
admitindo a dita conversão antes, a qual a antecedia ou suponha
problematicamente, mostrando como nesta opinião e na contrária se havia
prosseguir o assunto e lugar e ordem da duração do mundo em que segundo cada
uma das ditas proposições caía o estado consumado do reino de Cristo.
10.ª Reprova-se a opinião que entende da dita conversão as
palavras - unum ovile, et unus pastor e sobre esta sentença de tantos e tão
graves autores, como tenho alegado, as mesmas palavras parece que mostram não
se entenderem somente de Cristo haver de tirar ou desfazer a parede que dividia
os ditos povos de que fala S. Paulo, senão também da vocação e redução dos
ditos povos à fé de Cristo, por meio da qual conversão e redução se virão a
fazer então um só rebanho debaixo de um só pastor, como exprimem as palavras -
illas oportet me adducere et vocem meam audient, et futurum ovile, et unus
pastor - de maneira que primeiro se hão de reduzir as ovelhas, e obedecer à voz
do seu pastor, e então, todas elas reduzidas, se fará um só rebanho.
11.ª Reprova-se ser significado o império otomano, chamado –
cornu parvulum - do cap. 7.° de Daniel, por se inferir desta explicação que o
império romano não há de durar até ao fim do mundo; mas a dita sentença é de
Genebrardo, Elitódio, Tesurdenteu, Fr. Heitor Pinto, Vielmo, Salazar, o padre
Bento Fernandes, e outros, os quais fundaram a dita sentença e a interpretaram
com graves razões e notícias de que não puderam ter conhecimento os expositores
antigos, sendo quase todos os ditos autores não só doutos mas também das
religiões mais eminentes em letras como a de S. Agostinho, S. Bento, S.
Francisco, S. Domingos, S. Jerônimo, S. Paulo, e a minha de Jesus.
12.ª Reprova-se que antes da vinda do Anticristo possa haver
duração deste império por muitos anos, ainda por séculos, e, entre trinta e
duas opiniões dos doutores que tenho, ao menos quatro delas são tão largas que
não só admitem no dito espaço a duração de séculos, senão ainda de milhares de
anos. Esta é a suposição em que falava, tomando-as indeterminadamente.
13.ª Reprova-se a explicação que pelas palavras de Daniel,
cap. 7.° - tempus, et tempora, et dimidium temporis - entende-se três séculos e
meio; dizendo-se que este sentido é calvinístico, não sobre o mesmo lugar de
Daniel, senão sobre outros do Apocalipse em que São João diz que a perseguição
do Anticristo há de durar tantos dias, quantos fazem três anos e meio, se hão
de entender nas três cláusulas de Daniel: - tempus, et tempora, et dimidium
temporis - porém a sobredita explicação é de todos os doutores, que pelo -
cornu parvulum - entendem o império otomano e não o do Anticristo, e nesta
suposição nenhuma correspondência tem o dito lugar do tempo de Daniel com a dos
dias do Apocalipse, nos quais todos os católicos tomam os dias por dias, assim
como soam, e refutamos esta limitada duração do império de Anticristo, a imprudentíssima
blasfêmia dos calvinistas, com que atribuem ao vigário de Cristo o nome de
Anticristo.
14.ª Reprova-se a opinião, que não cursa os mil anos do
Apocalipse, cap. 20.°, pelo tempo que tem passado desde a vinda de Cristo, e há
de durar até ao fim do mundo. E a dita opinião não só é de muitos santos
antigos, senão de gravíssimos doutores, que escreveram de trezentos anos a esta
parte, como S. Ulbertino, Nicolau de Lira, Aurélio, Serafim de Fermo, Célio,
Panônio, Herculano, Pedro Galatino, Alcacere, e outros, que como em matéria
tópica suprível lhe dá cada um o princípio que lhe parece.
15.ª Reprova-se a sentença que pelos mil anos ditos entende
principal ou precisamente o número de mil, e afirma-se que eu sou do mesmo
parecer, e o dissimulo com o disfarce de anos incertos e indeterminados, por
não incorrer nas penas e censura dos milenários; e a dita opinião de mil anos,
que entende indeterminadamente o número de mil, é de todos os autores modernos,
proximamente citados, e de muitos padres antigos, que de nenhum modo foram
milenários, como S. Pascácio, S. Ambrósio, S. Hilário, e outros, sendo certo,
como se deve notar, que os milenários, nem são nem foram censurados pela
diligência com que computam o dito número de mil, senão por dizerem que Cristo
havia de vir ao mundo naqueles anos, para fins meramente temporais e corporais
menos decentes à pessoa de Cristo.
16.ª Reprova-se a opinião de haverem de aparecer algum dia
os dez tribos de Israel, supondo que não estão no mundo quase todos que deles
falam; mas a contrária sentença é de Josefo, S. Hilário, Ruperto, Abulense, S.
Antônio, Genebrardo, Cartusiano, Adero, mestre da história do - Fortalitium
fidei - e de outros muitos autores de todas as idades.
17.ª Reprova-se a opinião que admite a restituição dos
judeus à sua pátria, no caso em que todos se convertam à fé de Cristo, e que
cessando geralmente o seu pecado, cessará também o seu castigo. Esta sentença,
além de parecer mais conforme aos estilos da misericórdia divina, e ainda às
promessas gerais da sua justiça, e às promessas feitas ao mesmo povo, é
expressa de Cornélio Alápide, S. Agostinho, Terêncio, Adero, e outros.
18.ª Reprova-se dizer que o Messias esperado pelos judeus é
fantástico, fictício e imaginário; nisto segui o modo comum dos teólogos e
expositores da escritura, porquanto ainda que seda de fé que os judeus hão de
receber o Anticristo por Messias, e que o Anticristo há de ser verdadeiro
homem, e não fantástico ou fantasma, o que querem dizer os ditos autores, e o
que eu digo com eles, é que o Messias que os judeus esperam, é fingido e
imaginado pelos mesmos judeus, sem haver de ter mais outro ser, nem existência,
que o dito fingimento e imaginação; porque o verdadeiro Messias já veio, e o
que eles esperam nunca há de vir, nem existir, e que ainda que os ditos judeus
hão de receber o Anticristo por seu Messias, não é porque o Anticristo seja Messias
esperado por eles, senão porque eles vendo os milagres aparentes, que por obra
e arte diabólica fizer, hão de cuidar enganadamente, que aquele é o seu Messias
esperado, do qual erro porem se desenganarão depois que virem que de nenhum
modo concorrem na pessoa as principais propriedades, que no seu Messias
fingiam, uma das quais era a perpetuidade, sendo breve império e desastrada
morte do Anticristo seja.
19.ª Reprova-se que o ditame e opinião de bastar para prova
da verdade e profecia o sucesso das coisas profetizadas, quando os futuros são
meramente livres e contingentes, e tais que se não possam antever por alguma
arte humana ou diabólica, nem dizer-se acaso; mas esta doutrina é de S. Tomás,
Escoto, Caetano, Medina, Valença, Soares, Cristóvão de Castro, Martín Martínez,
Hurtado, Marcon, e de outros teólogos, e é praxe de todos os padres que
escreveram contra infiéis provando a verdade das escrituras, profetizar pelo
sucesso das coisas profetizadas, como se vê em infinitos lugares de S
Agostinho, Justino, S. Irineu, Tertuliano, Orígenes, Clemente Alexandrino,
Crisóstomo, S. Hipólito, Gregório Papa, Sertório, Sulpício, Teodoreto,
Procópio, e outros, e sobretudo nos mesmos argumentos com que os profetas
canônicos convenciam as verdades de suas profecias contra a incredulidade dos
judeus sendo este (como ensinam S. Jerônimo, Orígenes, S. Ambrósio, e Ruperto)
o sinal por onde os profetas verdadeiros, se distinguem dos falsos.
Estas são as opiniões reprovadas, nas quais se deve ponderar
que no processo e qualificações dele se propõem e expendem somente as razões e
fundamentos com que as ditas opiniões se reprovam e impugnam, e não aquelas com
que seus autores, não só as fazem prováveis e forçosas, senão também de maior
nota e evidência, e por isso as seguiram:
1.ª Se deve notar que não sigo, nem seguia determinadamente
algumas das ditas opiniões reprovadas, porque ainda não tinha feito eleição do
que havia de seguir em caso que fizesse o livro, como fica mostrado.
2.ª Se deve notar que para o intento do meu assunto pela
maior parte não era necessário seguir determinadamente algumas das ditas
opiniões, e assim propunha ou resolvia problematicamente, assinalando diversos
modos de dizer, em que na suposição de cada um deles se erigia o dito assunto,
porque acerca do império romano mostrava, como podia haver Quinto Império, ou
com extinção dele, ou sem ela. Acerca do - cornu parvulum - mostrava como podia
haver também Quinto Império, ou entendendo-se na figura o turco, ou Anticristo.
Acerca da conversão universal mostrava como se podia admitir o estado consumado
da Igreja, ou seja, antes do Anticristo, ou depois dele. O mesmo acerca do
domínio temporal de Cristo. O mesmo acerca da duração do mundo. O mesmo acerca
do número dos predestinados. Sendo certo que quem propõe as opiniões
problematicamente, ainda que prossiga o seu discurso, vai segundo a suposição
delas por não ser possível caminhar juntamente por diferentes caminhos.
3.ª E é ponto que muito se deve notar, que acerca das
verdadeiras profecias de que falo no número 14.° há ou havia duas opiniões, uma
que afirma bastar só o sucesso das coisas profetizadas na forma acima referida,
ou além do dito sucesso requerer que nas ditas profecias se não contenha falsa
doutrina, e quando eu disse e quis julgar que o Bandarra fora verdadeiro
profeta, falei na suposição de ambas estas opiniões, e de qualquer delas;
porque a primeira supunha que as predições do Bandarra estavam confirmadas com
os sucessos, e que nas ditas predições não havia doutrina falsa.
Nem faz contra isto dizer no dito papel, que as profecias
não têm outra prova senão os sucessos das coisas profetizadas, ainda na
sentença que requer a verdade, como prova ou parte da prova da profecia, e
outra que requer somente como condição de maneira que conforme o primeiro modo
de dizer - prophetiae probantur per eventum, dummodo nihil contengat contra
bonam doctrinam.
Este segundo modo de dizer, é o que eu segui, falando
coerentemente dele, e suposto que em Bandarra concorria o sucesso das coisas
profetizadas, e mais a boa doutrina, mas esta não como prova da profecia, senão
como condição, e por isso lhe não prova como lhe não chamam todos, os autores
que seguem este modo de dizer, nos quais se pode ver, e principalmente em
Cristóvão de Castro sobre Jeremias, e sendo certo e claro que por nenhum modo
quis seguir somente a primeira opinião, ainda que a tivesse por ordinária e
praticada, senão juntamente ambas, porque fica mais fortificada e estabelecida
a maior daquele silogismo, que era o fundamento principal e base de todo o
discurso.
E se não fiz expressamente todas estas suposições e
declarações (como também se omitiram outras no mesmo papel) foi porque a
brevidade de uma carta pedia os termos mais precisos, e porque sendo escrita a
uma rainha não era bem se lhe confundisse a clareza do discurso com o embaraço
das opiniões.
4.ª Se deve notar que eu não defendo, nem defendi algumas
das doutrinas reprovadas, e somente tratei de mostrar que não eram minhas, ou
intentadas por mim, e os motivos que tive para a: reputar por sã doutrina.
5.ª Se deve notar, que suposto serem as ditas opiniões de
matéria tópica, e seguida dos autores católicos, e não estarem proibidas, nem
censuradas até o tempo que as escrevi ou referi, de nenhum modo se me devia
imputar a culpa ou erro delas, ainda que afirmar, ou defendera as conclusões de
meus discursos, porque é livre aos professores de letras seguirem as opiniões
dos doutores que melhor servem a seu intento, como fazem os escritores
eclesiásticos e fizeram sempre os mesmos santos padres, os quais em diversos
lugares seguem pela dita razão opiniões contrárias, como nota e prova S.
Gregório Papa, sendo manifesto que eu não podia antever, que algumas das ditas
opiniões, e muito menos quais delas, houvessem de ser reprovadas.
PONDERAÇÃO 4.ª
ACERCA DAS SUPOSIÇÕES
Como a matéria do meu assunto era tão particular, e não
tratada ex professo por algum outro escritor, e no primeiro papel se acudia
somente a ela sem declaração das ditas alusões e intento do dito papel, e mui
alheias do assunto dele as suposições que de tudo se formaram e argüíram, das
quais suposições é forçoso referir ao menos as mais notáveis.
1.ª Supõe-se que o dito Quinto Império é humano como o dos
inquisidores ordinários do mundo, e não é senão o império e reino de Cristo.
2.ª Supõe-se que o dito Quinto Império é futuro, e não é
império do futuro, senão o mesmo império e reino de Cristo que foi, é, e há de
ser, e só se diz que há de ter um grande aumento no último e confirmado estado
da sua duração.
3.ª Supõe-se que o dito Quinto Império há de mediar entre o
romano e o do Anticristo, como que é o sexto: eu não digo tal, nem é necessário
dizer-se porque para um império ser o quinto, outro o quarto, basta que este
comece primeiro e o outro depois, ainda que ambos continuem a sua duração no
mesmo tempo, como de fato aconteceu ao império grego, e ao romano, que são
terceiro e quarto de Daniel, ou dos impérios de que ele trata, e como também
vemos hoje no quarto império, e no quinto, que é o do Anticristo, os quais
simul continuam enquanto ao nome de reino, que em respeito do romano se chamará
o quinto. O império do Anticristo se se fizesse a comparação com ele, se
poderia o nosso chamar sexto império, mas tenho para mim que o do Anticristo a
respeito do de Cristo não há de ter o nome de império, senão de perseguição,
nem de imperador senão de tirano.
4.ª Supõe-se que este império de Cristo é o mesmo que se
prometeu ao imperador temporal acima referido; e o que se diz do imperador
temporal, se diz também de Cristo, e do seu império; e esta equivocação é a que
tem embaraçado notavelmente a inteligência de todo o assunto, e feito grande
dano às proposições dele, sendo coisa mui sabida que é diversa da outra,
porquanto o império de Cristo é passado, presente e futuro, e o do imperador só
futuro; o de Cristo é temporal e espiritual; o do imperador só temporal; o de
Cristo é de supremo Senhor do mundo e cabeça da Igreja, e o do imperador é de
ministro, súdito e soldado dele; sendo este imperador em respeito de Cristo e
seu império o mesmo que foi Constantino ou Carlos Magno, só com suposição de
haver de ter domínio depois da conquista dos infiéis.
5.ª Supõe-se que deste imperador e império, é o que se chama
quinto império; e neste nome há também grande equivocação, porquanto o do
imperador e império se toma como ministro e instrumento do império de Cristo,
enquanto temporal, e no caso não constitui diverso império, e somente é parte
material e integrante do império universo de Cristo, ou se tome o dito império
absoluta, ou distintamente. como qualquer outro em respeito dos impérios
passados, e neste caso se o dito império futuro estiver dividido do romano,
chamar-se-á quinto, porque veio depois dele, que é o quarto ou quinto, formando
a denominação de qualquer deles, e juntamente chamar-se quarto ou quinto,
segundo os diversos respeitos, assim como El-Rei Filipe se chamou III do reino
de Portugal e IV do reino de Castela.
6.ª Supõe-se que este império há de ser com extinção do
reino; nem eu tal digo, nem é necessário tal suposição; porque se se fala na
extinção dele em a casa de Áustria, supondo, como desde o princípio disse, que
o império romano há de ser daquela casa, e passar-se a real de Portugal não
implicando que a mesma pessoa haja de ser imperador de Constantinopla, e ainda
de outro maior império, e seja juntamente império romano, que são os próprios
termos por que fala S. Metódio nem implicando que estes dois impérios postos na
mesma pessoa, um em respeito do outro, sejam quarto e quinto, e que durando ambos
até à vinda do -Anticristo, em respeito de um seja o império do Anticristo
quinto, e em respeito do outro sexto.
7.ª Supõe-se que provo o Quinto Império com os lugares da
escritura, com que os prova o Bandarra, porque ele não fala em império a que ele
chama quinto, nem eu digo tal coisa.
8.ª Supõe-se que não pode estar profetizado o dito estado,
ao menos em quanto à conversão universal, porquanto em tal caso haviam de estar
anunciadas as ditas profecias às nações de gentilidade, que se hão de converter,
como se anunciaram ao povo judaico e seus sucessores futuros, mas este
fundamento não é recebido dos autores da opinião que digo, os quais em
contrário mostram com a experiência e exposição comum de todos os modernos, que
a conversão da China, Japão e América estava profetizada em muitos lugares da
escritura, sem nunca lhes ser antecedentemente anunciada ut patet.
9.ª Supõe-se que não pode haver o dito estado consumado da
Igreja e império de Cristo por não estar profetizado na escritura, mas o contrário
consta de todos os meus papéis, e dos autores da dita esperança e opinião, os
quais mostram o dito estado profetizado em vários textos no Novo e Velho
Testamento, principalmente nos Cânticos de Salomão e no Apocalipse.
10.ª Supõe-se que o mesmo se segue de eu responder, que não
consta nem pode constar do tempo certo da duração do dito estado, porquanto
Deus sempre assinala o tempo em todos os séculos revelados, como se vê no
cativeiro do Egito e Babilônia, e nas leis Hebdômadas de Daniel, a qual seqüela
e seu fundamento também não admitem os autores da opinião que sigo, porque Deus
não tem obrigação de revelá-los - tempore et momento, quae pater possuit in sua
potestate - ainda que os tempos e medidas da duração do dito estado estejam
reveladas nos ditos textos dos Cânticos e Apocalipse, ou em outros da
escritura, nem por isso se segue haverem de se saber ao certo, por não constar
do modo com que se devem computar os dias, ou anos deles, como se vê nos mesmos
exemplos alegados, em que Daniel não entende os setenta anos de cativeiro de
Babilônia escritos por Jeremias sendo que eles se acabaram de cumprir, e sobre
as Hebdômadas e sua inteligência, ainda hoje há tanta controvérsia entre os
teólogos, e quase a mesma sobre o conciliar a cronologia do texto de Moisés com
a de São Paulo, acerca dos anos do cativeiro do Egito.
11.ª Supõe-se que admitir o dito estado da Igreja e reino de
Cristo, se segue também admitir outros adventos, e entender que há de vir
Cristo visivelmente do Céu à Terra a obrar e consumar o dito estado, porque
Deus - non adimplet effectus possibiles - senão por causas viáveis, a qual
suposição é totalmente alheia do estado e opinião de seus autores e minha,
porquanto ainda que o dito princípio dos efeitos e causas visíveis fora
universalmente verdadeiro, as causas visíveis próximas, que tantas vezes tenho
assinado, são os pregadores evangélicos. e o sumo pontífice; e o instrumento
temporal e remoto é o imperador, e a sua assistência também visível, sem ser
necessário que Cristo imediata e universalmente venha do Céu à Terra a obrar as
ditas conversões, como até agora tem feito em todas as da sua Igreja, por meio
dos pregadores, assistidos quando é necessário, por príncipes católicos e pios.
12.ª Supõe-se que o dizer eu, ou ter para mim, que os ditos
pregadores hão de converter o mundo, por motivos da potência temporal daquele
imperador, eu nunca tal disse nem imaginei, senão que os motivos que há de
propor hão de ser os da claridade da nossa santa fé, sem concorrer o dito
imperador mais que com a assistência da segurança, ou despesas necessárias aos
pregadores.
13.ª Supõe-se que eu digo, ou suponho, que o poder temporal
do dito imperador de tal maneira será necessário para a dita conversão, que só
assim se poderá fazer - et non aliter- esta suposição também não é minha nem
dos autores da dita opinião, os quais só dizem que o dito imperador será
somente conducente ao fim, e ao mistério da conversão e só - per accidens -
necessário para ela, como foi necessário a S. Francisco Xavier, para converter
a Índia, que El-Rei D. João o III lhe desse nau em que passasse, podendo
levá-lo por terra ou por cima das águas, como se diz levou a S. Tomé, e podendo
o dito santo converter os índios sem assistência e favor dos vice-reis, que ele
confessa por importante, S. Francisco os não converteu sem eles.
14.ª Supõe-se que este modo de conversão é mero judaico, e
quer ajuntar a Cristo com o Anticristo, porquanto o motivo por que os judeus
rejeitam a Cristo, e o não quiseram receber por Messias, foi porque veio pobre
sem potência temporal, mas já Fica mostrado que o dito modo é de pregação e
conversão, que supor-se (sic) é o que pratica hoje a Igreja, que nelas houve
príncipes cristãos aprovados por todos os santos pontífices e exercitados pelos
bispos e varões apostólicos e mais santos, como S. João Crisóstomo, S. Domingos
e outros; porque a assistência dos príncipes não tira que o objeto da pregação
seja Cristo crucificado, o qual sem embargo de ter sido - judaeis quidem
scandalum, gentibus autem stultitiam - quando Deus tira o véu dos olhos a uns e
toca o coração dos outros o adoram na mesma cruz.
15.ª Supõe-se que as felicidades prometidas, e o dito estado
do império consumado de Cristo, são sumas felicidades, delícias e riquezas, e
outras que corrompem os bons costumes, sendo que tal coisa não disse nem
escrevi, senão tudo em contrário, como são virtudes, santidade, graça e
salvação, na forma em que o prometem os autores da dita esperança, não havendo
nela coisa temporal, mas que por meio do império católico daquele príncipe, e
paz universal e vitória contra infiéis, coisas todas ordenadas ao bem
espiritual da Igreja, e as quais pede o mesmo Deus para a continuação.
16.ª Supõe-se que de admitir a opinião que entende pelo -
cornu parvulum - de Daniel, o império otomano se segue, que não é Cristo, ainda
vindo ao mundo, porque as duas visões do dito profeta falam do primeiro advento
do mesmo Cristo, mas nem os autores da dita opinião ou interpretação sendo
tantos e tão católicos, religiosos e doutos, quiseram assinar tal erro, nem
entenderam que ele se seguia do dito princípio, pois a mesma ilação se pode
fazer, que pelo –cornu parvulum - e sua extinção entendo o Anticristo, porque
tão certo é não estar ainda destruído o Anticristo, como não estar ainda destruído
o império do turco.
17.ª Supõe-se que em admitir o império temporal de Cristo,
digo ou quero que Cristo veio ao mundo a restituir e restaurar o reino de
Judéia e dos judeus; porque digo só, suponho, e creio que Cristo veio ao mundo
a destruir o reino do Demônio e do pecado, e restaurar o gênero humano, e
recuperar-lhe o reino do Céu, que pelo mesmo pecado se tinha perdido: e quanto
à restituição dos judeus, não antes, senão depois de convertidos, só admito com
a opinião acima referida, o que admitem os autores dela.
18.ª Supõe-se que o imperador é o Messias dos judeus, e que
com a promessa dele os fomenta Bandarra; que este seu imperador havia de ser
português e descendente de El-Rei D. Afonso Henriques, a quem, como ele diz,
foram dadas as chagas de Cristo por armas, e que em virtude das mesmas chagas
havia o mesmo príncipe destruir ao turco e vingar as injúrias da Igreja, e
desfazer todas as heresias, e que em concurso de quatro reis havia de receber a
investidura do novo impou da mão do pastor-mor, isto é, do sumo pontífice, e
que ele havia de dar muitos perdões e indulgências, de que o dita imperador e
seus vassalos irão armados à conquista da Terra Santa. Parecia-me que todas
estas condições e propriedades, de nenhum modo podiam competir senão àquele
imperador dos cristãos prometido por tantos santos, com as qualidades e para o
mesmo fim, entendendo também que não contradizia isto o levar o imperador à
conquista da Terra Santa gente de todas as leis; pois essa é a maravilha da
conversão dos judeus, de que Bandarra fala; da qual suposição é natural
conseqüência irem à dita conquista parte de todas as leis, nova e velha, mas já
convertidos estes e sujeitos ao sumo pontífice, como e mesmo Bandarra
expressamente diz.
19.ª Supõe-se que o Bandarra promete ao dito imperador
grandes felicidades e riquezas, e exaltação temporal, sendo que o dito Bandarra
promete ao seu imperador, é a vitória dos turcos; a exaltação em que fala não é
do imperador, senão expressamente da fé, e as riquezas que promete da prata e
oiro, são os autores que os ditos judeus convertidos prometem, não ao
imperador, senão à Igreja e ao sumo pontífice, e à imitação do que ofereceram
os Magos a Cristo, em reconhecimento da sua fé e obediência.
20.ª Supõe-se que Bandarra é suspeito de judaísmo, porque
não sinala fim ao império do seu imperador, e que eu também incorro na mesma
suspeita, porque ainda que lhe assinalo fim, e fingidamente: mas à certeza da
suposição tirada de dois atos tão opostos, não se pode responder nesta vida,
porque pertence ao juiz dos corações.
21.ª Supõe-se que o Bandarra é suspeito de judaísmo, porque
supõe que o dito império há de ser com extinção do romano, como os rabinos
ensinam e esperam, que há de fazer ô império do seu Messias: mas Bandarra - ut
patet- não fala com extinção do império romano; e somente diz que o seu
imperador com ser descendente D'el-Rei D. Fernando, não será de casta Goleima,
isto é, alemão e da casa de Áustria, como eu interpretava.
22.ª Supõe-se que o Bandarra não diz que El-Rei D. João há
de ressuscitar, mas o inferi assim das suas trovas, e porque me pareceu que
elas o diziam, mão só pôr conseqüências errôneas, mas por suficiente expressão
de palavras: assim que, do que interpretei, bem se segue que disse o que diz
Bandarra, e se disse mal, segue-se que não soube entender as trovas de
Bandarra, que é ignorância e não culpa, suposto que o ressuscitar um homem seja
coisa que Deus tem feito muitas vezes, e por muito menores fins que os que
parece se colheram do mesmo Bandarra, todos de grande glória de Cristo e bem da
sua Igreja.
23.ª Supõe-se que aqui parti a verdade de Bandarra com a
verdade da Escritura Sagrada, e a certeza de ressurreição de El-Rei D. João IV
com a de Isaque; e é certo que nem foi, nem quis fazer tal equiparação, e só
disse e quis dizer, que a minha ilação naquela conseqüência era semelhante à de
S. Paulo no caso de Abraão, e que aquele modo ou gênero de inferir, não só era
discurso, senão de fé, pois nem só eu inferia pôr aquele modo ou gênero de
inferir, mas também S. Paulo tinha feito a mesma inferência.
24.ª Supõe-se que chamar eu profeta ao Bandarra é sustentar
aos judeus na sua profecia, inculcando-lhes que ainda tem profetas da sua nação
contra o salmo - jam non est propheta et non cognoscet amplius - e posto que
depois de escrever este texto, e de faltarem profetas naquele povo (como muitas
vezes faltaram), teve ele não menos que todos os profetas canônicos: não fui eu
só o que tive neste reino ao Bandarra por profeta, e que ele predizia os
futuros, senão todos os que liam, interpretavam, alegavam, provavam e
exprimiam, sem que por isso se presumisse de tantas pessoas doutas, católicas e
timoratas, que tivesse alguma delas pensamento de favorecer na dita opinião os
judeus, quanto mais nunca podia ser o Bandarra profeta do povo judaico, porque
sempre o tive e tenho ainda pôr cristão-velho, e dado que fora da nação
hebréia, sendo cristão e filho da Igreja, se segue que era profeta da mesma
Igreja, e não da sinagoga, e santo como S. Paulo, S. João Evangelista, S. Jacó,
e outros que escrevem os atos dos apóstolos, ainda que fossem hebreus de nação,
nem por isso eram profetas dos judeus, senão de Cristo, e assim tive para mim,
que na suposição do Bandarra ser profeta de Cristo e da Igreja, e de um reino
cristianíssimo, como o de Portugal, correspondendo) a este a opinião e assunto
de suas profecia., ou predições, que todas me pareciam ordenadas à exaltação da
fé de Cristo e suas chagas, e extirpação de todo o gênero de heresias e não
anunciando aos judeus, nem a seus tribos, mas que a sua redenção, fé e
obediência da Igreja, e haverem de acabar e ter fim todos os seus erros.
25.ª Supõe-se dizer eu que Bandarra via futuros - intuitive
- pelo mesmo modo que é próprio de Deus; e tal coisa não disse nem escrevi, nem
disputei, supunha somente que os via, ou podia ver por um de três modos com que
os profetas vêem os futuros, e por isso se chamam – videntes.
26.ª Supõe-se que o dito Bandarra é suspeito de judaísmo,
porque não fala na Santíssima Trindade, nem em Nosso Senhor, nem na paixão de
Cristo, e que eu por comentar e seguir o mesmo, incorro na mesma censura: mas a
verdade é que se não podia inferir os ditos erros pela razão que se supõe,
porque há muitos e maiores livros de autores católicos e santos, que não falam
em Nosso Senhor, nem na Santíssima Trindade, que é nome que também se não acha
em toda a Sagrada Escritura pelo vocábulo - Trindade - bastando que se achem as
pessoas em número, como também basta que se achem em Bandarra (como se acham
muitas vezes) a saber: das três Pessoas da Santíssima Trindade, que é o que os
judeus particularmente negam, acha-se assim mesmo nele o milagre da Redenção
chamando a Cristo Redentor e Salvador, acha-se a paixão falando no Calvário e
nas chagas muitas vezes e com muita honra, acham-se os sacramentos nomeando-os
sempre com respeito, o batismo, crisma, ordem, e os corporais da sagrada
eucaristia; acha-se finalmente o Inferno e glória- chamando a Cristo muito alto
Rei da Glória, que é confessar manifestamente sua divindade; anunciando
finalmente que serão contrários os signos e arriamos; e é certo que a heresia
de Árrio e dos arrianos, como a dos judeus, é negar a divindade de Cristo,
assim que pelos fundamentos da suposição não podia eu inferir que o Bandarra e
o seu livro fosse suspeito de judaísmo.
27.ª Supõe-se que as palavras do dito livro do Bandarra -
que os judeus serão cristãos sem jamais haver erro - são judaísmo dissimulado
debaixo delas, as quais eu não entendi assim nem ainda sei como se poderá dizer
que os judeus serão cristãos, e que a seita que agora seguem é erro, senão por
aquelas mesmas palavras, principalmente dizendo o mesmo Bandarra em outra
parte, que os judeus e os turcos se hão de acabar, e isto é o que eu digo, e o
que se achará escrito nos meus papéis.
28.ª Supõe-se ser opinião minha que a mesma profecia pode
ser verdadeira profecia e conter doutrina falsa; mas esta suposição, como as
outras que se fundam em palavras equivocadas e as demo por de menos preço,
envolve uma grande equivocação, porque a dita palavra - profecia - pode
significar uma profecia, isto é, somente uma proposição profética, e neste
significado é implicância manifesta, poder mesma profecia conter doutrina
falsa, porque para ser profecia há de se revelada por Deus, e Deus mão pode revelar
coisa falsa em nenhuma matéria, quanto mais em matéria doutrinal; em outro
sentido pode a palavra profecia não significar uma proposição, senão um livro
ou tratado de proposições proféticas, ou chamadas profecias, assim como o livro
de lsaías se chama - Profecia - e não - Profecias - e o livro do Apocalipse de
São João se chama - Apocalipse - e não - Apocalipses - e neste segundo
significado, conforme a opinião comuníssima, que admite no mesmo sujeito
verdadeira profecia e erro contra a fé, acerca de diversos objetos pela qual
alega S. Crisólogo, e mais cinqüenta doutores, me pareceu bem podia e mesmo
livro ou papel conter proposições verdadeiramente proféticas, e algum,: ou
algumas que contenham falsa doutrina, escritas por ilusão ou ignorância, e ainda
por malícia do que teve as verdadeira revelações; mas esta opinião ou modo de,
dizer, se há de entender si das pessoas e revelações particulares, porque se a
pessoa for ministro, e ainda intérprete da sua palavra, então pertence à
providência divina - ex alio capite - estorvar, e não permitir, que nem por
ilusão nem por malícia, nem por ignorância, diga coisa errada; e porventura
quis com esta distinção conciliar as duas sentenças opostas, por que, como
notei no papel apresentado na mesa, há dois ou três gêneros de verdadeiros
profetas: os do primeiro gênero são canônicos, tiveram por ofício (como muitos)
serem intérpretes de Deus, como Isaías e Daniel. Os do segundo gênero também
são canônicos, mas não tiveram o dito efeito, como muitos, José e Davi. O do terceiro
gênero, que não são canônicos, nem tiveram o dito efeito, como muitos santos, e
outras pessoas ilustradas com verdadeiro espírito profético; e nas profecias ou
escritos dos profetas do primeiro e segundo gênero, de nenhum modo, e em
nenhuma opinião pode haver palavras que contenham falsa doutrina.
Porém, nas profecias ou escritos dos profetas do terceiro
gênero, parece-me, que, conforme a opinião sobredita, não implicam poder
juntamente haver verdadeira profecia, e erro contra a fé: assim como o mesmo
sujeito tem profecia e erro no mesmo entendimento, por que não poderá também
escrever essa profecia e esse erro no mesmo papel? De maneira que se um santo,
depois de ter revelações de Deus, tivesse algumas ilusões do Demônio, não
conhecidas por tais (como se lê de muitos), e nas ditas ilusões se contivesse
algum erro material contra a fé, parece que poderia o dito santo no papel
escrever as verdadeiras revelações de Deus e juntamente o erro da sua ilusão; e
se um rústico ou idiota tivesse algum erro também material contra a fé, e
durante este erro Deus lhe revelasse alguns futuros, parece que poderia o dito
idiota escrever no mesmo papel as profecias da sua revelação, e mais os erros
da sua ignorância. Finalmente, se qualquer homem a quem Deus revelasse futuros,
e depois das ditas revelações caísse em algum erro contra a fé, e sem cair
neste o quisesse proferir maliciosamente, parece que poderia escrever no mesmo
papel juntamente assim as verdades da revelação de Deus, como o erro ou erros
da sua malícia, e em todos estes casos, e qualquer deles, se segue que no mesmo
papel, e na mesma escritura, debaixo do mesmo nome de profecias e revelações
haveria verdadeiras profecias, ou proposições verdadeiramente proféticas, e
reveladas juntamente, e outras que contivessem erros e falsa doutrina.
Isto é o que me pareceu se podia dizer coerentemente,
suposta a dita opinião, a qual porém não é minha, senão de seus autores. Só
advirto, que, do que acabo de dizer, se não infere coisa alguma contra o que
tenho dito na ponderação 3.ª n.° 4, acerca da verdadeira profecia, porque
somente se segue daqui, não se poder provar que estas profecias são verdadeiras
profecias, ainda que verdadeiramente o sejam, porquanto suposto estarem
escritas de mistura com erros e falsa doutrina, ou lhes falta parte da prova,
conforme o primeiro modo de dizer, ou lhes falta a condição referida, conforme
o segundo.
29.ª Supõe-se saber eu que o livro do Bandarra estava
proibido por suspeito de judaísmo. Eu tal coisa não soube, antes supus sempre o
contrário, não me vindo ao pensamento, que pudesse ser proibido, e muito menos
proibido por suspeito de judaísmo, um livro que os senhores inquisidores e
prelados deste reino consentiam correr nele manuscrito, e impresso, e que não
só era lido e interpretado pelos mesmos prelados, mas consentindo ou aplaudindo
que s alegasse nos púlpitos, e se imprimissem muitos lugares dele em Lisboa,
com licença do santo ofício, enquanto se mostrava ter predito Bandarra os seus
futuros meramente contingentes; e se afirmava com aprovação do mesmo santo
ofício, que fora homem de boa vida, que não pode estar com ser suspeito na fé.
30.ª Supõe-se que em Roma se não proíbem livros senão por
matéria de fé, e que nesta insinuava eu, podiam ser lisonjeados os castelhanos
nos supremos tribunais da sagrada cúria: mas a verdade é imaginarem também por
outras matérias graves, ainda que não sejam de fé, se podiam proibir, e se
proíbem livros em Roma, como se proibiu o livro de Antônio Pores, e nessa
suposição falava.
31.ª Supõe-se que eu tinha ódio ao sumo pontífice, e à
sagrada congregação do santo ofício em Roma, por ela haver censurado as minhas
proposições, sendo que tal notícia não tive, senão depois que se me leu nesta
reclusão, e que o papel de que sou argüido do dito ódio, foi escrito e enviado
ao conselho geral muitos dias ante dela, do qual papel se prova ser tão
contrária à minha notícia e suposição, que nesse mesmo representava ao dito
conselho geral o pejo que tinha, em que as partes do meu assunto, que tocavam a
Portugal, fossem enviadas a Roma, onde tinha ouvido se remetiam alguma
matérias, sujeitando no mesmo tempo esta e as demais, não só a um senão a dois
tribunais do santo ofício, em Lisboa e em Coimbra.
32.ª Supõe-se que recusando de suspeitos nas ditas causas de
Portugal aos ministros de Roma, debaixo da palavra - ministro - entendia ao
sumo pontífice, e à sagrada congregação dos eminentíssimos cardeais superiores
ao santo ofício deste reino, mas a verdade sincerissimamente é, que, segundo a
informação que tinha dos estilos de Roma e Portugal, em tais casos entendi
somente debaixo da dita palavra - ministros - aos qualificadores de Roma por
votos consultivos que no conselho geral deste reino se houvesse de resolver,
não sendo tão ignorante, que imaginasse, que debaixo do nome - ministros - se
entendesse o sumo pontífice, nem que a todo o tribunal do santo ofício se
podiam pôr suspeições, e que estas, sendo de superiores, se houvessem de julgar
pelos inferiores; e por me não constar dos sobreditos estilos bastantemente,
para purificar qualquer culpa ou desacerto daquele papel, acrescentei (como
fica dito) a cláusula - no que me foi possível - e protestei por tudo o que por
minha ignorância houvesse errado.
33.ª Supõe-se que as ditas suposições acerca dos ministros
romanos, foram postas em ordem a muitas coisas de fé, sendo certo que todo o
meu intento e receio só era por alguns pontos históricos, e juntamente pela
história e juramento D'el-Rei D. Afonso Henriques, que, como no princípio
disse, era a pedra fundamental de todo o assunto no tocante a Portugal; porque
sendo o dito juramento tão recebido, e tantas vezes aprovado neste reino pelo
santo ofício é certo que todas as nações estrangeiras, e muito mais os
castelhanos e italianos, zombam da verdade da dita história, e a têm por mera
impostura e fábula, máxime dizendo-o assim Mariana[1] que em Itália é o texto
das histórias de Espanha; e sendo lá reprovada a dita história, ficava o meu
assunto perdido, estando pelo contrário certo que em Portugal se não havia de
reprovar.
34.ª Supõe-se que o dizer eu, e representar ao conselho
geral, que o assunto do dito livro era tão grande, que pessoa douta e sábia o
julgava por digno de um concílio, mostrava - mere hereticum - querer apelar do
sumo pontífice - ad concilium futurum - eu não sei como destas palavras se
podia presumir em mim tal extremo de contumácia e desobediência à sé
apostólica, sendo as mesmas palavras escritas a um tribunal e ministros, não só
súditos, senão os maiores reverenciadores do sumo pontífice, escritas em uma
súplica em que lhe pedia com muita submissão tempo suficiente para discutir os
fundamentos do dito assunto, e os sujeitar logo ao mesmo tribunal sagrado para
com aprovação sua saber o que havia de seguir em todas as matérias dele, como
expressamente se contém no dito papel.
35.ª Supõe-se, finalmente, que quando escrevi em uma parte
de meus apontamentos, que o Bandarra podia ser chamado ao santo ofício por
calúnias, e em outra parte com uma autoridade de Castro, que alguns
censuradores por quererem censurar proposições alheias, mostravam erro e
ignorância das suas; e em ambos os ditos lugares quis remoquear aos ministros
do santo ofício, atribuindo-lhes as calúnias, ou erro, ou ignorância; e
verdadeiramente que quando isto me foi dito fiquei afrontado e corrido, de que
tal descomedimento e despropósito cuidasse do meu pouco juízo, sendo coisa
muito clara, que no primeiro lugar que falava dos denunciadores do Bandarra,
que o podiam acusar caluniosamente com falsos testemunhos, de que se não livra
tribunal algum, por mais puro e santo que seja, como, segundo minha lembrança,
digo no mesmo lugar: no segundo dos censurados, aludia e remoqueava
nomeadamente ao padre Luís Alves, reitor do colégio do Porto, e ao abade fr.
Jorge de Carvalho, por suspeitar que algum deles, ou ambos, haviam denunciado certas
proposições, de que se me faz cargo, que eu tinha dito em conversação, mal
entendidas ou interpretadas por eles, e constando como consta, que os ditos
apontamentos eram para fazer o papel ou livro que tratava de apresentar aos
senhores inquisidores, e de suas mãos havia de passar aos revedores e
qualificadores do santo ofício: bem se vê que quem esperava dos ditos ministros
seu bom despacho, não os havia de querer picar com palavras tão indignas e
descorteses, sendo igualmente certo que as ditas palavras se haviam de riscar,
e não haviam ser copiadas, sem que ao compor, e ordenar o dito papel, me
ocorresse a menor imaginação de que podiam ser tomadas ou torcidas na suposição
em que eu agora as vejo.
Estas são, senhores, as suposições de que se me forma não
parte do meu processo, senão todo ele, supostas e deduzidas todas contra a
formalidade do fato ou contra a formalidade do sentido, ou quando menos contra
a formalidade da tenção, e do ânimo com que foram proferidas as proposições,
como em todas fica mostrado ou apontado, quanto sofreu a brevidade deste
memorial, e como mais claramente conhecerá quem as considerar atentamente:
sobre elas peço se me ponderem principalmente duas coisas:
1.ª Que todas as proposições tomadas contra a suposição
verdadeira, ou formal, ou de fato, ou dos fundamentos, ou do sentido, ou da
conhecida tenção com que as proferi, de nenhum modo são proposições minhas, e
como de proposições não minhas, se me não deve fazer cargo, nem atribuir erro
ou culpa delas.
2.ª Que não subsistindo por qualquer dos sobreditos modos as
ditas proposições, ficam também sem substância, e de nenhum vigor todas as
suspeitas censuradas, e conseqüências que delas se deduzem, por mais exata e
natural que pareça a forma com que são deduzidas, da qual forma agora direi.
PONDERAÇÃO 5. ª
ACERCA DAS CONSEQÜÊNCIAS
Posto que das sobreditas suposições, e do modo com que me
foram supostas e introduzidas, reconheci com grande admiração, e edificação
minha, a superlativa sabedoria, vigilância, e circunspecção deste sagrado
tribunal, e alta prudência inspirada por Deus, com que está ordenada a eficácia
de seus meios para convencer, penetrar, descobrir, e tirar outro qualquer erro
ou engano contra a pureza da fé, por mínimo e oculto que seja.
Muito maior conhecimento formei de tudo isto no artifício e
disposição dos argumentos e conseqüências com que tão apertadamente fui
argüido, redargüido, e instado, posto que todos fossem contra mim; e porque
tenho tão justos fundamentos para recear, que sem embargo de serem fundados
sobre as suposições tão diversas das minhas se possam persuadir e fazer crer,
é-me necessário ponderar e descobrir o dito artifício dos argumentos ou
conseqüências: para que se veja que nenhuma delas, nem seus erros me devem prejudicar,
porei de cada gênero um exemplo.
As conseqüências do primeiro gênero são aquelas em que do
grau remotíssimo em concurso se infere a diferença particular como disséramos:
este indivíduo é animal, logo é víbora: assim nem mais nem menos se me atribui
a peçonha. Exemplo. Os judeus esperam que o seu Messias há de ser imperador do
mundo, e o turco também espera semelhante aumento ao seu império, até aqui o
proferente diz que o imperador acima referido há de ser imperador do mundo:
logo esta esperança é judaica e maometana, como se não for possível e
imaginável haver imperador no mundo, senão daquelas nações e daquelas seitas
O mesmo argumento se pode fazer em contrário: os espanhóis e
franceses esperam e aspiram à monarquia universal: logo esta esperança e
católica e cristianíssima, e melhor ainda sobre os fundamentos e autoridades do
mesmo assunto. Muitos santos e muito varões insignes em virtude e espírito de
profecia, prometem o sobre dito imperador, logo esta esperança é santa, logo
esta esperança profecia.
As conseqüências do segundo gênero, são as em que se cala o
que digo, e se supõe o que não digo: e de premissas em que se cala o afirmado,
e se supõe o negado ou imaginado, que muito se infiram tão horrendas e
afrontosas conseqüências como as que tenho ouvido? Exemplo no mesmo imperador:
eu digo com os autores da dita opinião, que este imperador há de ser europeu,
cristão, descendente de príncipes cristãos, zelosíssimo do serviço de Deus,
propagador da fé de Cristo, e que todo o poder e autoridade se há de empregar
nele, e no serviço da Igreja e obediência ao sumo pontífice ajudado deste
imperador se há de converter e reformar o mundo florescendo mais que nunca o
culto divino, a justiça, a paz, e todas virtudes cristãs, acrescentando pelos
fundamentos particulares deste reino, que o dito imperador há de ser português,
e rei do nosso reino de Portugal e cabeça do império, Lisboa. E sendo esta a
manifesta verdade do meu assunto, tantas vezes repetida em todos os meus
papéis, e tão coerentemente achada em todas as partes e fragmentos deles, e
sobre se calarem todas as qualidades proferidas do dito imperador, as que se
supõe e afirmam que eu digo, ou quero dizer, são que o seu império há de ser de
sumas delícias e riquezas, e ambiciosa potência, e que há de converter o mundo
em si, e não a Cristo, e que os motivos da conversão não hão de ser os da cruz,
fé, e divindade do mesmo Cristo, senão de potência humana, e finalmente, que há
de ser este imperador do verdadeiro Anticristo, Messias esperado pelos judeus,
e judeu de nação e profissão, e que Deus lhe há de dar o império ex
observationibus legalibus, isto é, pela observância das leis e cerimônias
judaicas, e infinitas coisas deste gênero, nem ditas, nem imaginadas por mim,
nem ainda imagináveis. E como ao dito imperador se lhe tiraram as propriedades
que lhe dão os santos e autores católicos, e lhe aplicam e lhe põem as que os
judeus atribuem ao seu Messias, que muito é que sendo imperador cristão, pareça
-Anticristo; e que sendo príncipe católico, pareça judaico?
Senhores, se a S. Cristóvão lhe tirassem dos ombros o Menino
Jesus, e lhe pusessem uma esfera, há de parecer atlante; e se ao Menino Jesus
lhe tirarem da mão o mundo e a cruz, e lhe puserem um arco e aljava, há de
parecer Cupido; pois assim como um homem católico e santo, tirando-lhe as suas
insígnias, e pondo-lhe outras, se pode converter em um monstro gentílico e
fabuloso, e o mesmo Cristo em um ídolo, assim tem sucedido ao imperador do meu
assunto, sem embargo de ser tão católico e pio, e tão católicos e santos os que
o prometem, porque lhe tiraram as suas insígnias, e lhe puseram outras
As conseqüências do terceiro gênero, são as que se fundam na
equivocação ou impropriedade dos nomes, passando debaixo deles de um
significado a outro. Exemplo nos milenários: os milenários fundam a sua opinião
nos mil anos do cap. 2 ° do Apocalipse do qual lugar também usa o proferente em
prova do seu terceiro estado do império de Cristo; logo também é milenário? Até
aqui a chamada opinião dos milenários é condenada, errônea, herética e judaica:
logo o proferente segue os mesmos erros, e é quando menos suspeito de heresia e
judaísmo.
Para que se veja o artifício desta conseqüência, é
necessário que os milenários, própria ou impropriamente tomados, se distingam
em três espécies. Os milenários propriissimamente e da primeira espécie são os
que tiveram pôr cabeça a Cirinto, e foram condenados no concílio
hierossolomitano, como verdadeiros hereges, com mistura de judaicos. Os
milenários também propriíssimos e da segunda espécie, a que deu princípio S.
Dapias, discípulo de S. João Evangelista foram muitos padres e santos antigos
que tiveram alguns erros materiais, não condenados no concílio geral romano,
como quer Barônio nem em outro algum concílio; mas geralmente reprovados pela
comum estimação da Igreja.
Os milenários propriamente e propriissimamente, e da
terceira espécie, são muitos santos, teólogos e expositores modernos que,
impugnando de todo a dita opinião dos padres antigos, tomaram somente dela e
dos seus fundamentos, o que contém doutrina sã, provável, e de grande glória de
Cristo, e concorda com a sagrada escritura, e com revelações modernas de muitos
santos, e vem a ser um estado de nova perfeição, e maior na última idade da
Igreja, a qual em tendem os mesmos autores se descreve na última parte dos
Cantares de Salomão - quibus positis - se descreve o artifício da sobredita
conseqüência, respondendo a ela em forma, desta maneira: logo também o
proferente é milenário: distingo; é milenário propriamente, ou da primeira
espécie. que contém heresias; ou da segunda, que contém erros: nego; é
milenário da terceira espécie, propriamente ou impropriamente, que contém
doutrina sã, católica, e recebida de grande glória de Cristo, concedo.
As conseqüências do quarto gênero, são aquelas que de um
príncipe católico se infere uma ou muitas conseqüências heréticas. Exemplo: o
proferente diz e tem para si, que todo o cristão deve imitar a Cristo: logo é
ditame e parecer do mesmo proferente, que os santos (os quais foram os maiores
imitadores de Cristo) hão de ressuscitar antes da ressurreição universal, assim
como Cristo ressuscitou antes dela. Até aqui os judeus têm para si, que o
Messias há de trazer consigo aos patriarcas antigos ressuscitados; e os
milenários dizem semelhantemente, que Cristo vindo a este mundo, há de
ressuscitar os mártires antes da. ressurreição universal; logo o proferente tem
erros dos judeus, e dos milenários. Sobre este assunto não direi palavra, só
peço se pondere acerca dele, que se um princípio tão católico como dizer que
todo o cristão deve imitar a Cristo se me inferem tais conseqüências, que será
sobre tantas suposições assim referidas, tão alheias do fato do meu verdadeiro
sentido, como da fé e doutrina que sigo.
PONDERAÇÃO 6. ª
ACERCA DAS RESPOSTAS
Sendo tantas, tão várias e tão terríveis as suposições
referidas, e as conseqüências e censuras que delas e sobre elas se me tiraram e
argüíram, quase posso afirmar, que a nenhuma tive lugar de responder, ao menos
cabal e plenariamente, como agora peço se pondere pelas razões seguintes:
Primeira, porque as matérias são tantas e tão pouco
tratadas, e envolvem tantas dependências, questões e suposições, e são tantas
as dúvidas e dificuldades que sobre cada uma delas pode ocorrer ou argüir-se,
que quase é impossível haver-se de explicar e satisfazer a tudo por papel,
ainda que este fora muito largo, e ainda que as dúvidas e dificuldades se
propuseram muito clara e descobertamente, por ser o papel um intérprete mudo,
que só mostra o que leva escrito, sem poder explicar ou distinguir, nem
responder ao que nele, dele, e contra ele se me interpreta ou argüi, o que
falando se pode fazer, e sendo ouvido, que foi a causa por que eu representei
ao conselho geral, me permitisse dar razão de mim verbalmente.
Segunda, porque pedindo muitas vezes que me fossem dadas ou
quando menos lidas as proposições censuradas por suas próprias e formais
palavras, nunca o pôde conseguir, argüindo-as somente das perguntas que se me
faziam, e por esta razão ainda que as respostas se ajustavam à formalidade das
perguntas, não se podiam ajustar à formalidade das proposições.
Terceira, porque as ditas proposições censuradas (como vi
agora, que me foram lidas) pela maior parte não são proposições símplices,
senão complexas, compostas de muitas proposições, ou eqüipolentes a elas, sem
distinguir sobre qual ou sobre quais caiu a censura, donde se segue, que ainda
que me fossem declaradas em próprias formalidades, não poderia eu entender
quais eram os pontos censurados, como ainda agora os não entendo em quase
todos, bastando-me só entender que as ditas censuras estão aprovadas, para; sem
mais discorrer sobre elas, as aceitar em qualquer sentido, e sobre todos e
quaisquer pontos a que se refiram.
Quarta, porque nas perguntas que se me fizeram nos exames,
não podia responder senão ao precisamente perguntado, nem me era permitido
dilatar-me nas respostas, com que deixava de dizer muitas coisas importantes à
inteligência e descargo da matéria delas.
Quinta, porque os argumentos e instâncias das admoestações
envolviam ordinariamente matéria nova, e não de menor força que as das
perguntas; e estes ficaram ou só respondidos por termo: graves, ou totalmente
sem resposta.
Sexta, porque o Tratado que compus nesta reclusão, como foi
escrito tanto tempo antes dos exames, de nenhum modo podia satisfazer nem
responder às coisas que se argüiam nela, por serem todas fundadas, como fica
mostrado, em suposições alheias do fato e matéria de assunto, e de todo o
pensamento e imaginação minha.
Sétima, porque ainda que desde o primeiro dia, e primeira
sessão dos exames tanto que conheci das ditas proposições, pedi logo papel e
tinta para, antes de outra notícia, fazer uma idéia breve em que declarasse
mais o verdadeiro argumento do meu assunto, partes dele, e com que desfizesse a
equivocação com que via confundir o império de Cristo com o do imperador e
ministro do mesmo Cristo, e de sua Igreja, da qual equivocação ou confusão de
pessoas e do império, se seguia um labirinto de enredos e conseqüências
inexplicáveis; de nenhum modo se me concedeu o dito papel, e só me foi
prometido para seu tempo, continuando por esta causa ás ditas conseqüências,
suposições, e confusões, sem eu as poder bastantemente desembaraçar e declarar,
por não dar o perguntado lugar a tanto.
Oitava e última, porque sendo tantos e tão dilatados os
exames, e todas as perguntas deles armadas com tantos artifícios, e argüidas
com tanta sagacidade e sutileza, como dos mesmos exames se vê, e depois
replicadas e tornadas a instar com toda a força de razões e textos, e por
pessoa de tantas letras, experiência, sobre ter antevisto matérias e os autores
delas, e escolhido as maiores e mais dificultosas e perigosas, era eu obrigado
a responder a tudo de repente que se me perguntava ou argüia sobre elas, sem
emendar ou mudar palavra, estando destituído de todo o socorro de livros, e sem
procurador com quem pudesse consultar um ponto, ou ele pudesse estudar por mim,
sendo o meu cabedal tão limitado, como é notório, e havendo tantos tempos, que
pela minha reclusão e antecedente enfermidade, estou tão remoto de todo o
gênero de estudo, quanto mais do que era necessário para tanta variedade de
matérias e controvérsias, que tocam e envolvem todo o gênero de escrituras.
Pelo que, e por tantas outras razões de incapacidade,
quantas concorrem em mim mo estado presente, mão será maravilha que em alguma
ou muitas destas respostas haja errado, por mais não saber nem alcançar, do que
tudo me retrato e peço perdão, esperando juntamente da benignidade deste
tribunal, que suposto haverem ficado tão defeituosas as ditas respostas por
todas as causas sobreditas, e mui particularmente pela minha última
desistência, se me supram e hajam por supridos todos os ditos defeitos.
PONDERAÇÃO 7.ª
ACERCA DAS DENUNCIAÇÕES
Discorrendo sobre os fundamentos com que podiam ser
denunciadas coisas tão sem fundamento, como a da proposição ou proposições, de
que ultimamente fui argüido, tendo feito menos reparo das antigas por sua
matéria, tudo quanto se me oferece acerca de uma e outras, se reduz a
ignorância ou a malícia dos delatores, posto que mais a malícia que ignorância,
e assim entendo que o poderia provar facilmente, se me fosse dada notícia de
quem os delatores eram.
Funda-se a presunção de ser por malícia nos muitos inimigos
que tenho, e nas muitas ocasiões que tive, e circunstâncias que em mim
concorreram para os ter, assim religiosos como seculares.
Quanto aos seculares, a mercê que me fazia o Senhor Rei D.
João IV, o príncipe, e a rainha, fez meus capitais inimigos a todo os que de
mais perto assistiam aos ditos príncipes, e procuravam o valimento e lugar que
imaginavam lhes tirava o meu fora do paço; não era menor ocasião de grandes
ódios o ruim despacho de muitos requerentes, que me pediam ajudasse suas
pretensões no que, pudesse; e porque não podia quanto elas queriam, de amigos
se tornavam inimigos. A este número também pertencem, ainda com maior razão,
todos os embaixadores e ministros das embaixadas cujas cifras eu tinha, e sua
majestade ordenava me dessem notícia de todos os negócios, e os não resolvessem
sem ouvir o meu parecer, com o qual sua majestade ordinariamente se conformava,
tendo-me os ditos ministros como sobre ronda de suas ações, e temendo á
inteireza dos meus avisos e informações, pelo crédito que el-rei me dava.
Aos inimigos que tinha por meu respeito, se ajuntavam também
os dos meus parentes, os quais vingavam muitas vezes em mim, o que não podiam
neles, ou neles o que não podiam em mim, do que há muitos exemplos em Portugal,
e no Brasil, por serem dos maiores ministros daquele estado.
No Maranhão, pelo zelo da conversão e liberdade dos índios,
que eu pretendia, consegui geral ódio, não só dos moradores de toda aquela
terra, senão também dos governadores e ministros que lá vão de Portugal, e de
outros ainda maiores, que sem lá irem por vias públicas e ocultas, têm lá seus
interesses. Fiados no poder destes interessados, se atreveram a me expulsar a
mim e a meus companheiros, levantando-me para dar algum ser a tão feio excesso,
e provando-me com muitas testemunhas, que eu queria entregar o Maranhão aos
holandeses: se lá houvera santo ofício, pode ser que lhe não fora necessário
irem buscar o falso testemunho tão longe.
Quanto aos religiosos, podem ser estes da minha religião, ou
de outras, particularmente daquelas que têm maior emulação à companhia, e seus
sujeitos: entre todas sou mais odiado, das que têm conventos no Maranhão, por
me terem por inimigo descoberto, sendo a verdade, que venerando a todos os
religiosos quanto merece o seu hábito, só me não podia conformar com a
perniciosa doutrina que nos púlpitos, confessionários, e nos testamentos,
seguem acerca do injusto cativeiro dos índios, que é o maior impedimento para a
sua conversão.
E porque esta foi a causa por que El-Rei D João encomendou à
companhia as missões daquela gentilidade, com a morte do dito rei trataram de
se desafrontar deste que tinham por agravo, e foram eles os principais
instrumentos da minha expulsão, seguindo-me sempre em toda a parte com o mesmo
ódio, que nas mudanças da fortuna antes se farta, do que se compadece; mas
quando faltaram estes acidentes particulares, ou encontros particulares, e
outros semelhantes, bastava a aceitação geral com que era ouvido na corte, e
lidos no mundo os meus papéis, para que os oficiais do mesmo ofício (que são os
maiores sujeitos das religiões) lhes não pesasse de ver a minha doutrina
abatida e mal avaliada, podendo também acontecer que tenham menos parte nesta
dor os mesmos avaliadores. Deixo de representar e pedir a vossas senhorias o
que neste escrúpulo pudera justamente, porque sei que a justiça e inteireza de
todos os senhores que julgam as causas do santo ofício, tanto há de examinar em
qualquer qualificação a verdade dos fundamentos, como a pureza dos ânimos, sendo
fácil de conhecer nos movimentos da pena, se a move a caridade ou o afeto.
Nos religiosos da minha religião, são tanto interiores mais
sensíveis os motivos da emulação, quanto de mais perto viam diferença com que
el-rei me honrava, e os grandes me buscavam me deferiam, sentindo também
naturalmente os pregadores antigos autorizados, que se desse aos meus poucos
anos o título de pregado d'el-rei, que as suas cãs e talentos melhor mereciam,
principalmente sendo eu de província estranha, e mais de província do Brasil, e
se presumiu que pediria eu a el-rei a divisão das províncias, e sustentava sua
majestade a persistir nela; chegara a tanto extremo o zelo dos ditos
religiosos, que negociaram com o padre geral que me despedisse da companhia,
como com efeito se tivera executado, se el-rei o não, proibira.
Diante de Deus julgo que o dito zelo foi fundado em amor da
religião, e não em ódio meu; mas se acaso alguns dos delatores são padres da
companhia, muito é para ponderar, que ouvindo-me alguma proposição de que
fizessem escrúpulo, não tivessem zelo para me advertir logo que reparassem no
que dizia da religião, e que tivessem zelo para me denunciarem ao santo ofício!
Mas quando as denunciações não fossem motivadas do ódio ou
malícia, podia facilmente ser que fosse do que acima chamo ignorância, e vem a
ser a desatenção com que muitas pessoas, ainda que sejam doutas, assistem nas
conversações, e na apreensão cor que geralmente os homens ou trocam a
formalidade das palavras, ou a interpretação, e entendem em diversos sentidos
do que são ditas, do que temos quotidianamente experiência os pregadores, a
quem os mesmos que nos querem louvar, repetindo-nos o que dissemos, no levantam
mil falsos testemunhos, dizendo-nos a nós mesmos outra coisa muito diversa do
que temos dito: nascendo naturalmente este erro da forma do juízo de cada um,
em que se recebe o que se ouve; se isto acontece em um sermão aonde um só fala,
e todos estão atentos, que será em uma conversação, bastando que se não oiça um
dizer para parecer que se afirma o que somente se refere, estando mais exposta
a este perigo a conversação que for mais ordenada e discursiva. Da minha
conversação sabem os que me tratam, que discorro sobre os pontos que se me
oferecem, com ponderação das razões ou diferenças de conveniências, e das
dificuldades e inconvenientes por uma e outra parte, sendo uma das disposições,
premissas, e outras conseqüências, umas próprias, e outras impróprias, como
sucede em todas as matérias que se disputam, e nos divertimentos de uma
conversação, não é fácil que as apreensões sejam tão firmes e atentas, que não
discrepem em qualquer palavra do sentido, ou disposição dela, sendo a dita
discrepância como a dos botões, que basta arrancar-se um, para ficarem os mais
fora da sua casa; assim me consta com toda a evidência, que sucedeu na
conversação e denunciação do Porto, e da mesma maneira podia ter acontecido em
quaisquer outras. E também além do ódio poderia ter sua parte a inclinação
natural, que sempre nos portugueses pende para o pior.
PONDERAÇÃO 8.ª
ACERCA DO RÉU
Esta última ponderação, o fora melhor fazê-la outrem, do que
eu, pois sou forçado nela a falar por mim, e de mim, mas o fazê-lo forçado,
será desculpa das ignorâncias que disser, que assim S. Paulo a tudo o que
disse, sendo tão verdadeiro, quando obrigado a falar de si se valeu da mesma
desculpa, dizendo: - quasi incipiens loquar vos me coegistis. De duas coisas me
vi principalmente argüir nos exames.
A primeira é de suspeito na fé, a segunda de presumido, e
começando por esta segunda argüição - que quero saber mais que os padres e
doutores antigos - já disse que acerca da zona tórrida, e dos antípodas,
ensinaram os pilotos portugueses ao mundo, sem saberem ler nem escrever, o que
não alcançou Aristóteles, nem S. Agostinho, pela diferença dos tempos; e sendo
os tempos, como confessam os mesmos padres, o melhor intérprete, bem pode
acontecer, sem maravilha, e cuidar-se sem presunção, que um homem muito menos
sábio, depois do discurso de largos anos, e sucessos de algumas profecias, que
os antigos e santíssimos por falta de notícias não alcançaram, as alcance,
Palas, Arias Montano, Lugunensi, Pôncio, Scherlogo, Mendonça; e outros muitos,
os quais expõem muitas escrituras proféticas, sucedidas nestes últimos séculos,
confessando que os padres antigos não puderam pela dita causa conhecer o
sentido literal delas.
Assim que, quando fizera eu o mesmo, fora um daqueles que
nem por isso são notados de presumidos; mas não é este o meu caso, porque ainda
que me atrevi a navegar por um mar tão profundo, e por meio de uma cerração tão
escura, como a das escrituras proféticas, fui seguindo o farol de tanto número
de santos, e doutores antigos e modernos, quantos no princípio ficam
enumerados, dizendo o que eles primeiro disseram, e querendo só reduzir a um
discurso e volume, o que eles escreveram dividido em muitos lugares.
Confesso, com tudo que se me pode replicar, que ainda em
seguimento de outros autores, não era esta empresa para um homem tão idiota,
como eu agora tenho acabado de conhecer que o sou; mas esta culpa tiveram em
parte meus prelados, os quais de idade de dezessete anos me encomendaram as
ânuas das províncias, que vão a Roma historiadas na língua latina, e de idade
de dezoito anos me fizeram mestre de primeira, aonde ditei, comentadas, as
tragédias de Sêneca, de que até então não havia comento; e nos dois anos
seguintes comecei um comentário literal e moral sobre Josué, e outro sobre os
Cantares de Salomão em cinco sentidos; e indo estudar filosofia de idade de
vinte anos, no mesmo tempo compus uma filosofia própria; e passando à teologia
me consentiram os meus prelados que não tomasse postilha, e que eu compusesse
por mim as matérias como com efeito compus, que estão na minha província, onde
de idade de trinta anos fui eleito mestre de teologia, que não prossegui por
ser mandado a este reino na ocasião da restauração dele.
Em Portugal continuei os mesmos estudos, com a aplicação que
todos sabem, sendo mais morador da livraria, que da cela não prejudicando em
nada aos ditos estudos as peregrinações de Holanda, França, Inglaterra e
Itália, onde fui enviado por sua majestade porque sobre a notícia que tinha
muito universal dos livros, sendo sempre bibliotecário em todos os colégios,
pude ver as melhores livrarias do mundo, e tratar os homens mais doutos, e
consultá-los no estudo primeiro, e estudar todo o gênero de controvérsia, nem
só na paz, senão com as armas na mão, ajudando-me, não pouco, o mesmo
conhecimento das terras e mares, para a exata cosmografia e inteligência da
história profana, eclesiástica e sagrada, para a qual também me apliquei muito
à cronologia dos tempos, ordem e sucessão das idades do mundo, da Igreja, e dos
homens grandes, que nelas e nele floresciam, querendo conhecer os ditos homens
pelas suas obras, e lendo-as para isso nas suas fontes, principalmente as dos
santos padres e expositores da escritura, a qual passei por vezes toda, e mais
particularmente os livros proféticos, insistindo sempre no sentido genuíno e
real, e pretendido pelo Espírito Santo, sem me divertir nas folhas e nas flores
(que é o estudo ordinário dos Portugueses), e procurando sobretudo a coerência
de uns lugares com outros, de modo que todos se pudessem entender
concordemente, sem contradição ou repugnância alguma em todo o texto sagrado.
Estas são as diligências que fiz em toda a minha larga vida,
sendo por mar e por terra meus companheiros inseparáveis os livros, e estas são
também as partes que eu lia e ouvia dizer se devia compor o bom intérprete das
escrituras, donde resultaram as razões e aparências, porque eu, com pouca
culpa, e outros com não pouca temeridade, se enganaram comigo, entendendo que
na minha insuficiência havia capacidade para uma obra que tanto excedia a
limitação do meu cabedal e talento.
Quanto às suposições de fé, depois de dar infinitas graças a
Deus por me chegar a estado em que era necessário dar razão de mim em tal
matéria, peço aos senhores inquisidores sejam servidos, primeiro que tudo, de
se informarem dos procedimentos deste indigno religioso, principalmente no
tempo em que escreveu o papel de que se tomam estes fundamentos, para que
julguem ao menos se o rigor da sua vida, e o seu zelo da disciplina religiosa,
e do culto divino da propagação da fé, e da salvação das almas, da reformação
dos costumes, da freqüência dos sacramentos, da promoção à piedade e de assim
entre os portugueses, como infiéis, índios, e outros, eram ou podiam ser de
homem que não amasse a Cristo, nem cresse na sua fé? E se outrossim, eram ou
podiam ser de homem que não amasse a Cristo, os assuntos de seus sermões, e
matéria e eficácia deles, e as doutrinas de todos os domingos, uma que fazia na
matriz aos índios na sua língua, e outra aos estudantes e portugueses no seu
colégio, a que concorria todo o povo, e as confissões gerais, e mudanças de
vidas que resultavam das ditas doutrinas e pregações, e dos livros espirituais,
principalmente da diferença entre o temporal e eterno, de que levei muitas a
este fim, que repartia e fazia repartir aos que eram capazes daquela lição; e
se era de homem que não amasse a Cristo, nem cresse na sua fé e contínuo
socorro de todos os pobres, que são neste mundo os substitutos do mesmo Cristo,
aos quais chegou a dar-lhes a sua própria cama, dormindo daí por diante em uma
esteira de tábua, sem jamais se negar a pobre, coisa alguma que houvesse em
casa aonde ele se achava, tendo dado a mesma ordem a todas as outras?
E porque naquelas terras não havia botica, a mandava ir
todos os anos deste reino, a grandes despesas, para a fazer comum de todos os
enfermos, assim pobres, como ricos, procurando e ajudando a que se fizesse um
hospital para os soldados que morriam ao desamparo, solicitando as causas dos
presos, e intercedendo por eles, e livrando muitos, e mandando à cadeia muito
freqüentes esmolas, e informando-se dos párocos e dos confessores, das
necessidades que havia ocultas, as quais remediava também ocultamente, e com
maiores socorros do que se podia esperar de quem professava pobreza? Ou se era
de homem que nem cresse, nem amasse a Cristo, o cuidado e a vigilância, e as
vigílias e indústria que tinha, para que nenhum gentio ou catecúmeno morresse
sem batismo, nem algum batizado sem confissão, indo muitas vezes quatro e seis
léguas a pé, e muitas vezes por quinze e vinte, atravessando bosques e rios,
sem ponte nem caminho, caminhando de dia e de noite para confessar a um índio
enfermo? E posto que nem as suas forças, nem as suas virtudes eram para outros
maiores trabalhos, ao menos fazia que os empreendessem seus companheiros, indo
alguns deles distância cinqüenta léguas, e sessenta, a acudir a um moribundo,
só na dúvida de se poder achar ainda vivo, posto que se afirmasse estaria já o
índio morto, como verdadeiramente se achava: e porque as distâncias e as
necessidades eram muitas, e os sacerdotes poucos, compus um formulário breve,
com todos os atos com que em falta do sacramento da penitência, se pudesse uma
alma pôr em graça de Deus, escrito pelas palavras mais substanciais e breves, e
de maior eficácia, assim na língua portuguesa, como na geral dos índios, para
que qualquer pessoa nos casos de necessidade, pudesse suprir a ausência de
sacerdotes.
E outra segunda parte na mesma forma, para poderem
administrar o sacramento do batismo, e dispor para ele nos casos e termos mais
apertados, a qualquer gentio; e outras semelhantes indústrias e prevenções,
para que nenhuma alma se perdesse. E será finalmente de homem que não cresse em
Cristo, nem amasse a Cristo, a constância, a que outros chamam pertinácia, com
que tanto instou e trabalhou para arrancar por todas as vias daquele país o
pecado universal, e como original dele, dos cativeiros injustos dos índios, sem
embargo de ter contra si todos, não só seculares, senão eclesiásticos; e
tomando a Portugal sobre esta demanda, e embarcando-se para isso em um tal
navio, que no meio do mar se virou, onde tivera acabado os seus trabalhos, se
Deus para outras maiores o não livrara quase milagrosamente?
E posto que o Demônio nesta empresa parece prevalecia, não
deixou contudo o bom zelo de alcançar contra ele na mesma batalha muitas
importantes vitórias; sendo a primeira o vigário da matriz da cidade do
Grão-Pará, cônego da sé d'Elvas, o qual deu liberdade por uma escritura
pública, a mais de sessenta escravos, com grande escândalo de suas ovelhas,
granjeando com esta obra o indigno instrumento dela, o ódio de todos os homens,
mas ganhando aquelas e outras almas para Cristo, porque e pelas quais, em
tantos conflitos se viu por mar, e por terra, e expôs tantas vezes a vida às
setas dos bárbaros, e à fúria dos elementos, sem bastarem estas demonstrações
não sendo feitas no seu cubículo, senão na face do mundo, para o não argüirem
de inimigo de Cristo? Não cuidavam assim os que lhe ouviam as práticas dos
passos da paixão de Cristo, que ele introduziu na igreja de S. Luís do
Maranhão, repartidos por todas as sextas-feiras da quaresma, sem que nenhuma houvesse,
em que não fosse necessário acudir com remédios a muitos dos ouvintes, uns
porque desmaiavam, outros porque abafavam de dor e de lágrimas, mas ainda era
maior o fruto, e muito conhecido de uma história ou exemplo de Nossa Senhora,
que também introduziu e pregava todos os sábados bem de tarde, a que concorria
com grande devoção e expectação toda a cidade, introduzindo assim mesmo na dita
igreja todos os dias o terço do rosário, de que ele era capelão, e não só
vinham rezar os estudantes e meninos da escola, por obrigação, e para bem se
costumarem, mas também se achava ordinariamente à mesma devoção, o governador,
ouvidor-geral, provedor-mor da fazenda, o vigário-geral, o da matriz, e outras
pessoas principais, sendo muitas as famílias que no mesmo tempo faziam o mesmo
em suas casas, rezando pais, e filhos, e escravos, em um coro; e as mães,
filhas, e escravas, em outro seguindo em tudo a forma a que eram exortados.
Isto é o que obrava o réu em a mesma terra, e no mesmo tempo
em que foi escrito o papel de que se inferem as conseqüências porque e chamado
ímpio e blasfemo; mas supostas as coisas referidas, e outras mais interiores
(que se calam e passaram no Maranhão) em Coimbra estão os padres Francisco da
Veiga, Jácome de Carvalho, e José Soares, que podem testemunhar neste caso, e
estão em Portugal também o Dr. Pedro de Melo, Baltasar de Sousa Pereira, e o
Dr. Jerônimo Cabral de Barros, governador, e capitão-mor, e sindicantes que
foram naquele tempo e estado, meus capitais inimigos (e Deus o mundo sabem o
porquê) aos quais sem embargo disso ofereço por testemunhas do mesmo e ao
licenciado Domingos Vaz Correia, vigário-geral que foi muitos anos e o era
naquele tempo do Maranhão, e os mestres pilotos e marinheiros que de lá me
trouxeram duas vezes, os quais dirão, como as primeiras rações da minha mesa,
ou do meu refeitório eram de todos os passageiros pobres, que em vinte e duas
vezes, que me tinha embarcado, tomei sempre à minha conta.
E como sendo roubados e lançados na ilha Graciosa em número
de onze pessoas, eu me empenhei para remediar a todos, dando a quatro
religiosos do Carmo que ali vinham, hábitos e toda a roupa interior, e a todos
os mais camisas, sapatos e meias, e a outras pessoas, vestidos que lhes eram
necessários, e com escolher de entre os marinheiros um homem de respeito, e
outro dos passageiros, lhes entregava sem limitação o dinheiro necessário para
sustento de todos, em todo o tempo, que foram dois meses que nos detivemos na
dita ilha, e na Terceira, aonde dei a todos embarcação e matalotagem de
biscouto e carne, e pescado para quarenta dias, por serem os ventos contrários,
com que passaram ao reino; e assim os ditos marinheiros e passageiros desta viagem,
de que era mestre Fulano Soeiro, vizinho de Lisboa, como os da última de que
era mestre Fulano Pontilha, vizinho de Aveiro, dirão também como nos ditos
navios pregava todos os domingos e dias-santos, quando o mar e o tempo dava
lugar, dizia missa, e havia muitas vezes confissões e comunhões, e várias
doutrinas entre a semana, e lição da vida de santos; e todos os dias pela manhã
o terço do rosário, e à tarde a ladainha de Nossa Senhora, a que ninguém
faltava, e depois dela meditação para muitos que se achavam a ouvi-la, e à
noite exame de consciência para todos, tudo com grande silêncio, ordem e campa
tangida, como se fora convento ou noviciado de religião.
E o mesmo se observava em qualquer canoa de missão, sendo as
primeiras peças da matalotagem o altar portátil, e o relógio de areia, e a
campainha para os exercícios espirituais, conforme as regras e estatutos que
fiz por ordem do padre geral, quando me mandou os seus poderes para que desse
forma à missão, dispondo e ordenando nele tudo o que se havia de guardar, assim
quanto à observância religiosa dos missionários, como no pertencente à
conversão dos índios, as quais regras deduzidas em mais de 180 capítulos, foram
todas aprovadas em Roma, sem se acrescentar nem diminuir palavra, e delas há em
Portugal algumas cópias, de que se poderão ver os errados ditames do meu
espírito e zelo da religião. Mas vindo ao particular da fé: de idade de
dezessete anos Fiz voto de gastar toda a vida na conversão dos gentios, e
doutrinar aos novamente convertidos, e para isso me apliquei às duas línguas do
Brasil e Angola, que são os gentios cristãos boçais daquela província: e porque
para este ministério me não era necessário mais ciência que a doutrina cristã,
pedi aos superiores me tirassem dos estudos, porque não queria curso, nem
teologia, e cedia dos graus da religião, que a eles se seguem. E posto que os
superiores mo não quiseram conceder, antes me tiraram a obrigação do voto, e o
padre geral fez o mesmo, eu contudo o tornei a renovar e insistir nele, até que
ultimamente o consegui, indo-me para o Maranhão tanto contra a vontade d'el-rei
e do príncipe, como é notório, levando e convocando de diversas partes da
companhia para a mesma missão, mais de trinta religiosos de grandes talentos,
com os quais trabalhei por espaço de nove anos, navegando neste tempo água doce
e salgada mais de mil e quatrocentas léguas, fora muitas terras e desertos,
sempre a pé, favorecendo Deus tanto o fervor daqueles operários, que já a
missão e a fé estava estendida em o distrito de seiscentas léguas, que tantas
contei eu, e andei desde a serra de Ibiapaba até o rio de Gapoios, sendo
quatorze as residências em que assistiam religiosos, acudindo daí a diversas
partes, e havendo algumas em que só os batizados inocentes em espaço de quatro
anos passaram de seiscentos, além de muitos adultos batizados - in extremis -
para os quais, e para outros que mais devagar se iam catequizando, compus ao
mesmo tempo com excessiva diligência e trabalho, seis catecismos que continham
em suma todos os mistérios da fé e a doutrina cristã em seis línguas
diferentes; um na língua geral da costa do mar, outro na dos nhengaíbas, outro
na dos bocas, outra na dos juramiminos, e dois na dos tapuias, tendo-se
levantado e edificado de novo todas as igrejas das sobreditas residências, e
outras muitas, servidas e ornadas todas pela indústria de quem escreve este
papel, porque a todas dava vinho e hóstias para as missas, e cera branca para
os dias principais, sendo levadas todas estas coisas deste reino de Portugal,
porque naquelas terras as não há; como também iam de Portugal todos os
ornamentos, uns ricos e outros decentes, e os sacrários e os altares portáteis,
os cálices e as custódias maiores e menores, aquelas de grande majestade,
cruzes, castiçais, alâmpadas, turíbulos, alguns de prata, e os mais de latão,
muitos sinos, muitas imagens de Cristo, e de Nossa Senhora e de vários santos,
umas de pintura para os retábulos, e outras de relevo estufadas, assim maiores
para os altares, como menores para as procissões, para mostrar aos gentios,
muito inclinados aos seus bailes, que a lei dos cristãos não é triste.
E assim mesmo todo o aparato dos batismos para se fazerem
com grande pompa, necessária igualmente aos olhos da gente rude que só se
governa pelos sentidos, muitas resmas de papel, tintas, e latas para os
sepulcros, e imagens da paixão para as procissões da quaresma e semana santa,
que tudo se introduziu desde logo para ficar mais bem fundado e estabelecido
entre aqueles novos cristãos, sendo matéria de grande devoção ver derramar
sangue por amor de Cristo e vestidos de disciplinantes à portuguesa, e muitos
daqueles mesmos, que poucos meses antes de fartavam de sangue e carne humana,
sendo raro o que naqueles dias não fizesse esta penitência, e para verem da
mesma maneira com os olhos o mistério do nascimento de Cristo, cuja solenidade
fazia celebrar com diálogos na sua língua representados por seus próprios
filhos.
Mandava também ir de Portugal as imagens do presépio, e
outras curiosidades daquela festa, de que se paga ainda a gente de maior
entendimento; vários ternos de charamelas e flautas para maior solenidade das
missas, as quais já alguns dos índios têm aprendido a cantar em música de
órgão, e ajuntando-se a esta despesa, mais chegadas ao culto divino, outras ordenadas
ao mesmo fim, que são as que lá chamam resgates com que se conciliam os ânimos
dos bárbaros, e vem a ser grande quantidade de machados, fouces de roçar,
facas, tesouras, espelhos, pentes, agulhas, anzóis, e de tudo isto milheiros
levados com o demais de Portugal, muito pano de algodão para cobrir, ao menos
decentemente, as mulheres convertidas; e outros vestidos de panos de cores
alegres para os maiores ou régulos das nações; nas quais coisas todas, em duas
vezes que fui ao Maranhão, em nove anos que lá estive, despendi com aquela nova
cristandade mais de cinqüenta mil cruzados, pela valia da terra, sendo muito
maior o cuidado e desvelo, que o valor, para que se julgasse se foi demasiado
empenho com Cristo e a sua fé, para quem se diz que espera outro Messias.
E por que não pareça muito ou a quantidade ou quantia da
despesa, esta se tirava de quatrocentos mil-réis que o Senhor Rei D. João me
deu para este fim, situados nos dízimos do Brasil, donde vinham em açúcares,
livres de direitos, e do meu ordenado de pregador d'el-rei, e das esmolas de
meus parentes, que só para isso lhas aceitava, e de empenhos e dívidas que
fazia, de que ficava por fiador o padre procurador do Brasil, e principalmente
da grande e contínua liberalidade com que el-rei em sua vida, e a rainha por
sua morte, assistiam àquela missão, não só por via da junta de propagação,
senão por mercês e ordenados particulares.
Mas o que muito se deve notar é que a aplicação das coisas
sobreditas, toda era e vinha a ser à custa da caridade e mortificação dos
missionários, os quais comendo farinha de pau, bebendo água, e vestindo algodão
tinto na lama, tiravam de si e da boca o que tinham por mais bem empregado no
culto divino, e no socorro dos pobres de corpos das almas que iam salvar, sendo
o maior trabalho e dificuldade de toda a missão, a cobiça insaciável dos que
por cativar e vender os corpos, punham em risco as almas; e, para o fazerem
mais livremente, e sem estorvo, chegar a prender sacrilegamente e desterrar aos
que por amor das mesmas almas se tinham desterrado.
Mas agora sobre a impunidade que logram estarão muito
satisfeitos desta sua ação, pois não consentiram que na sua terra pregasse a fé
um homem a quem o santo ofício prendeu por crime contra ela, e tem por suspeito
na fé.
Indo para o Maranhão, quis Deus que por uma tempestade
arribasse o navio às ilhas de Cabo Verde, e conhecendo o desamparo espiritual
delas, e de toda a costa de Guiné e Angola, escrevia daí apertadissimamente a
sua majestade, metendo grande escrúpulo ao príncipe (que já ficava informado)
para que se acudisse àqueles gentios e desamparados dos cristãos, de que
resultara mais duas missões que ainda hoje se continuam com grande frutos, um
dos religiosos da Piedade em Cabo Verde, outra de carmelitas descalços em Angola;
e tornando depois a este reino a procurar o remédio (que depois foi causa da
minha expulsão) com que se evitassem os cativeiros injustos, e se tirasse de
uma vez no Maranhão este estorvo da conversão das almas, com o bem deles
procurei juntamente o universal de todos os gentios, alcançando de sua
majestade se informasse a junta da propaganda ou propagação da fé, de que sou
deputado, pondo em prática com alguns senhores a congregação do mesmo fim, que
pouco depois se instituiu em S. Roque, debaixo da proteção de S. Francisco
Xavier.
Tornando em menos de um ano outra vez ao Maranhão, sobre
novas instâncias de sua majestade, mas com novas leis sobre a conversão e
liberdade dos índios, bastou só a fama das ditas novas leis, certificadas só
com a firma de quem as veio procurar, para que muitos índios dos mais bravos e
belicosos, se mandassem logo sujeitar à direção dos missionários, e por meio
deles à obediência da fé e de sua majestade, havendo mais de vinte anos que por
agravos recebidos faziam cruel guerra aos portugueses; e se a cobiça dos que
tinham maior obrigação de guardar as ditas leis não fizera tão pouco caso
delas, como das de Deus e da natureza, fora sem dúvida hoje aquela uma
cristandade das mais florescentes e copiosas que teve a Igreja: contudo,
enquanto com a vida se não se perdeu o respeito às suas ordens, houve lugar de
se fazerem onze missões pelo sertão dentro até à distância de quinhentas
léguas, sendo um dos missionários delas, que tinha obrigação de dar exemplo aos
mais, este suspeito na fé. Nas quais missões não faltavam trabalhos e perigos,
em que alguns dos missionários deram a vida, e trouxeram para o grêmio da
Igreja muitos milhares de almas de diversas nações - potiguaras, tupinambás,
cutingas, pacuias, poquis, maianas e anaias -, e se começava a introduzir a fé,
e receber nos ticujuras e aronquis, que são dois grandíssimos reinos ou
províncias, por onde também se abria o passo a outros muitos, sendo sempre
maior a dificuldade e trabalho vencer a contrariedade dos portugueses, que a
fereza dos índios e bárbaros gentios, isto é, quanto à fé destes, de que pudera
fazer muito largas relações.
Quanto aos hereges, no tempo em que vivi e passei por suas
terras me apliquei com toda a diligência ao estudo de suas controvérsias, tendo
com eles batalhas quotidianas e públicas, por ser esta a sobremesa daqueles
países, principalmente à noite; assistindo-me Deus com fortíssimos argumentos e
evidentes soluções, que por não acrescentar suspeita de presumido, não digo que
se não acham nos livros, e sempre pela graça divina com vitória da fé e honra
da Igreja romana; e quando estive na mesma Roma, aonde tive também disputas, e
convenci a um que entre eles era douto, e dispus um memorial para se apresentar
à santidade de Inocêncio X sobre a conversão dos hereges do Norte, pelas
notícias que eu tinha alcançado do que mais dificultava a sua conversão ou
redução, o que se impediu com a repentina brevidade, com que o padre geral, a
instância D'el-Rei de Castela, por seu embaixador o duque do Infantado, me
mandou sair da cúria. Apliquei-me à apreensão de quatro índios canarins levados
por desastre a Inglaterra desde a Índia, os quais tirei de entre aquela gente
com dádivas, e os trouxe com muita despesa a Portugal para que se não fizessem
hereges, como já se tinha feito outro seu companheiro, e um grumete português
natural do Porto, moço de quinze anos, do qual tive notícia ia ferido de peste
em um navio velho da mesma frota de Holanda em que eu tinha embarcado, e me
passei ao dito navio, e assisti nele por mais de vinte dias, em que padeci três
terríveis tempestades, até que morreu confessado nas minhas mãos para que os
hereges o não pervertessem.
Quanto ao judaísmo não só procurei em Holanda e França
reduzir a cegueira dos judeus em algumas conversações particulares (que pela
ignorância deles não merecem o nome de disputas) mas diante dalguns, em
Amsterdã, convenci ao seu mestre português, Manassés, e apelando para outro
italiano, Mortera, também lhe pedi que me trouxesse, e que escolhesse o dia e
lugar em que quisessem disputássemos, o que eles não fizeram, pelo tal Mortera
não querer.
Mas agora poderá ser cuidem que me não pareceram bem as
explicações do seu Manassés em ordem à conversão dos judeus; admirado de ver
que os padres da companhia ingleses escrevem contra os hereges da sua
Inglaterra, e os alemães contra os de Alemanha, os franceses contra os de
França, e que os portugueses não escrevem contra ao judaísmo (que é a heresia
de Portugal), determinei escrever contra eles o livro de que dei conta nesta
mesa; mas porque me disseram em Lisboa pessoas inteligentes, que o santo ofício
o não havia de deixar imprimir, desisti desta obra, e converti o zelo que Deus
nela me tinha dado em a conversão dos gentios, despedindo-me totalmente da dos
judeus, e dizendo com S. Paulo, e S. Bernardo: - Convertimur ad gentes.
Até dos turcos que só restam entre os inimigos da fé, me não
esqueci, querendo ao menos tirar de entre eles aos renegados, e aos que estavam
em perigo de o ser, dando a El-Rei D. João os meios com que isto se podia
conseguir, com pouco dispêndio da fazenda, e grande utilidade da navegação,
pois o reino está tão falto de marinhagem, que geralmente é a gente de que há
mais cativos em Barberia.
E posto que o alvitre e meios foram muito aprovados de sua
majestade, que lhe chamou inspirados pelo Espírito Santo, impediu-se a execução
por outros acidentes, e porque com a minha ausência não houve quem o intentasse
ou instasse: assim que, estes e outros semelhantes desserviços, são os que têm
feito e procurado fazer à fé de Cristo este outra vez tão indigno religioso,
que sobre este merece o nome de ímpio, de sacrílego, blasfemo, e outros mais
feios e de maior horror.
Agora me lembra, que não só no Maranhão, mas na ilha
Terceira, S. Miguel, e Graciosa, e em todos os navios em que naveguei,
introduzi o rezar o terço do rosário publicamente a coros, aonde se tem pegado
esta devoção a quase todos os navios mercantes, e das armadas, por indústria
daqueles mesmos marinheiros, como eles mesmos me disseram, que é novo argumento
do ódio que tenho a Cristo, e aos mistérios da sua vida, paixão e glória, e
também a sua santíssima Mãe, minha única advogada e senhora nossa.
Contra tudo isto se me opõe, que sou favorecedor dos judeus,
e se me prova com os dois papéis que antigamente fiz, e com ir a Roma e Holanda
a procurar-lhe sinagogas, e serem admitidos neste reino, o que tudo é sem
fundamento, e uma mera fábula do vulgo, a quem eu não havia de dar satisfação,
escrevendo pelas esquinas de Lisboa os negócios a que era enviado por El-Rei:
quais foram os negócios de Roma, pode dizer o senhor arcebispo eleito de
Lisboa, a quem se deram as mesmas instruções, quando no mesmo tempo esteve
nomeado embaixador extraordinário de França; e quais fossem os mesmos de Roma e
Holanda, e todos os mais, dirá o secretário d'estado Pedro Vieira da Silva, por
cuja mão corriam todos: mas porque se poderá imaginar, que este fingido negócio
dos judeus fosse ainda mais secreto, o dr. Pedro Fernandes Monteiro pode dar
notícia da verdade de tudo, porque ele era o secretário de uma cifra particular
que eu tinha com sua majestade para algum segredo secretíssimo, se acaso o
houvesse. A verdade lisa é, que acerca de cristãos-novos, além da perdição de
suas almas, me doeram sempre duas coisas:
A 1.ª, a mistura do sangue; a 2.ª, a destruição do comércio:
a este fim disse por muitas vezes a sua majestade, que, ou pusesse o comércio
todo em cristãos-velhos, ou buscasse remédio a que os interesses dele fossem de
Portugal, e não de Holanda, Veneza, Inglaterra e França, por onde os
cristãos-novos traziam divertidos os seus cabedais, e sobretudo que mandasse
estudar meios com que os cristãos-novos não casassem com os cristãos-velhos,
sob pena de todo o reino em cem anos ser judeu, assim como em cento e cinqüenta
era já a metade dele.
E que os ditos meios os comunicasse sua majestade com os
senhores inquisidores, e os resolvesse com eles, e os aprovasse pelo sumo
pontífice, que é a maior comprovação de que não pretendi coisa que não fosse
mui justa, justificada, e pia, quanto mais contra a fé: nem em mim se pode ou
podia considerar razão alguma pela qual houvesse de favorecer os judeus;
porque, pela graça divina, sou cristão-velho, e três cunhados e seus filhos,
que são os parentes que só tinha, são também cristãos-velhos; não tenho nem
tive jamais amizade com cristão-novo algum, exceto somente Manuel da Gama de
Pádua, por ser o mercador a quem meu irmão remetia do Brasil os haveres do seu
negócio, e açúcares, e por ser prebendeiro da capela que me pagava os meus
ordenados de pregador d'el-rei. Nem os cristãos-novos me deram nunca coisa
alguma, nem eu havia mister que eles me dessem, porque além de não ser curioso
nem cobiçoso de ter (como é mais sabido na minha religião), para tudo que eu
quisesse tinha parentes muito ricos, que me davam o que eu não queria aceitar,
e sobretudo tinha a liberalidade d'el-rei, que sem limite punha em meu alvedrio
a inteira disposição da sua fazenda a qualquer parte onde me enviava, não
usando eu jamais desta largueza, antes restituindo aos ministros da fazenda
real, até o que dos viáticos me sobejava, como de tudo pode ser boa testemunha
Pedro Vieira da Silva.
Nem acrescenta nada a sobredita suspeita ou presunção, o
haver eu comentado ou seguido as trovas do Bandarra, porque o tive sempre por
cristão-velho, sem raça de moiro ou judeu, como ele mesmo afirma, onde
perguntado, se é dos judeus ou dos agarenos, diz:
Senhor, não sou dessa gente
Nem conheço esses tais.
E por me parecer que as ditas trovas combinam grandemente
com as profecias dos santos, e opinião dos doutores acima referidos, de cuja fé
ninguém duvida, e finalmente, além das razões apontadas neste e em outros
papéis, porque tão longe estava de ter o Bandarra por favorecedor dos judeus,
que antes entendi sempre, sentia ele também muito o ver ou prever quão grande
dano havia de fazer à fé e limpeza do sangue dos portugueses a mistura dos
casamentos destes, e ainda a dos fidalgos com os judeus, pelo dinheiro dos
dotes. Este é, ou cuidaria eu que era, o sentido daquela sua trova:
A linhagem dos fidalgos
Por dinheiro é trocada,
Vejo tanta misturada:
Sem haver chefe que mande,
Como quereis que a cura ande
Se a ferida está danada?
onde se queixa o Bandarra, que o sangue limpo (até o dos
fidalgos) dos portugueses pelo interesse do ouro, se mistura com o dos judeus,
e que não haja chefe ou cabeça que mande, e que impeça esta misturada,
advertindo que a cura que o santo ofício aplica a esta ferida não é suficiente
a evitar todo o dano à dita ferida, e vão lavrando e corrompendo todo o corpo
do reino; e importa pouco que cada ano pelo santo ofício se queimem dez judeus,
se pelos casamentos crescem dez mil: e estes os remédios que eu lhe procurava.
Finalmente, seja a última prova da minha fé, o rendimento do
juízo, e segura obediência dela, ainda contra as evidências certíssimas da
própria consciência; pois sendo assim verdadeira e indubitavelmente, e
conhecendo com toda a interior certeza, que o sentido e disposição em que as
minhas suposições foram interpretadas e censuradas, é totalmente diverso
daquele em que as proferi, e do que supus nelas, e do que pretendi significar
por elas, entendo e creio, contudo, que as ditas censuras são muito justas, e
as ditas interpretações muito verdadeiras, e as aceitei, venero, e sigo muito
de meu coração, sem embargo de se julgarem antes de eu perguntado nem ouvido; e
se dilatei tanto tempo este inteiro e total rendimento, foi, não quanto à
aceitação das censuras, que desde o primeiro dia foram aceitadas por mim, senão
quanto à desistência das razões da minha inocência, e pureza da tenção em que
tinha proferido as proposições censuradas, foi pela razão do escrúpulo, e que
não tive quem me segurasse a ignorância, como procurei por todas as vias que me
foram possíveis.
Conformando-me, finalmente, com o ditame do confessor, que
foi a única pessoa com quem me pude aconselhar, o qual, depois de encomendar o
negócio a Deus, resolveu que tinha obrigação de dar razão de mim, e evitar o
escândalo; e quão pronto estivesse o meu juízo e o meu ânimo para o dito
rendimento e desistência total, bem se viu no mesmo ponto em que tive
suficiente razão para depor o escrúpulo, com a notícia de sua santidade haver
aprovadas as ditas censuras, sendo certo que se na dita hora se me tivesse dado
esta notícia, fora ela também a última de todas as dilações da minha causa, e
se tivera evitado o escândalo da cristandade e do mundo, a cujas partes mais
remotas, é sem dúvida terá chegado a notícia em dois anos, assim pela religião
ser a mais conhecida e dilatada em todo ele, como também pelo nome da pessoa
não ser o mais ignorado, principalmente entre aqueles a quem preguei a mesma
fé, de cujo juízo sou réu e preso, os quais terão justa razão de duvidar se
acaso lhes ensinei alguns erros contra ela, e se se poderão fiar certa e
seguramente da doutrina dos outros padres da companhia, pois o que entre eles
tinha o maior nome era tal, qual tinha espalhado a fama, e confirmado a prisão.
Mas estou confiado na misericórdia divina daquele Senhor -
que mortificat, et vivifacat, deducit ad infero, et reduxit - que assim como a
justiça do santo ofício achou motivos em mim, que conheço por mui justificados,
para uma tão extraordinária demonstração, assim a piedade do mesmo sagrado
tribunal acha motivos em si mesmo para restaurar o perdido, e satisfazer ao
dito escândalo.
O Espírito Santo que tão pontualmente assiste às resoluções
desta mesa, seja servido de guiar na decisão desta causa os juízos e ânimos de
vossas senhorias, ao que for de maior serviço de Deus, e glória de seu divino
beneplácito, que é a única lição em que estudo há mais de dezoito anos, e
nestes dois últimos me quis Deus examinar e tomar conta dela, posto que eu lha
não tenha dado tão boa como devia.
Mas sabe o mesmo Senhor, que se em mim não houvera mais que
eu, sem os respeitos do hábito que tenho vestido, nem uma só palavra havia de
ter falado em meu descargo, pondo toda a causa aos pés de Cristo crucificado,
deixando-a toda à disposição da divina providência, desejando, e tendo por
melhor e mais favorável despacho, o que fosse de mais descrédito e afronta, e
de maior matéria de padecer, para em algum modo seguir as pisadas do mesmo
Cristo, e participar dos opróbrios da sua cruz.
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ResponderExcluirComentário Único - demais descrições, na pág. devida - Genealogia Secreta de Jesus
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Eis aqui, a Luz da parábola da 'guita' do Cerzir do Corpo de Cristo [citada no comentário da pág. Pde. Antônio Vieira - Blog O Cerzidor]. Todos os comentários, observações e notas, sublimados em Isaías [pelos profetas - A Ascensão de Isaías] na imagem da profecia da Corte [na travessia do mar, à terra que Mana Leite e Mel - 'Vinde, Benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.'] ... fazem-se presentes nas palavras das 14 vestes descritas no Guia Núcleo Bios [à Núcleo Casa] na Forma de link's.
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